28.4.05

O PESO DE UMA TRADIÇÃO

Um dia decidi que ofereceria uma feijoada no dia do meu aniversário. E preparei, de fato, sozinho, feijoada para 150 pessoas no Estephanio´s, que se regalaram com muita carne, couve, arroz, laranjas, farofa. Isso foi em 2000. Acho que em 2001, 2002, 2003 e 2004, ofereci lentilha aos meus convidados. Isso, foi lentilha. Uma lentilha diferente, que eu criei. Preparada com o mesmo carinho que dispenso a tudo o que faço diante do fogão, chamo o prato de "lentilha carneada", já que fica o caldo bastante engrossado, com muita lingüiça, paio, carne-seca, costelinha e mais que tais. Ontem, meu aniversário, pela primeira vez não consegui me dar o dia de trabalho de presente. Atarefadíssimo, ocupei-me a ponto de não poder pensar em oferecer sequer Sopa Instantânea Knorr aos que iriam me abraçar. Tratei de marcar um descompromissado chope no Estephanio´s e pronto. Pensei que seria bom ver os queridos, abraçá-los, erguer o copo ao humor, brindar à saúde etc etc etc

Pronto, que nada.

O que vi foi um quadro de horror, chocante como "O Grito" de Edward Munch.

As pessoas vinham chegando e eu percebia os olhos vasculhando o ambiente. Os abraços que eu recebi foram velozes, os mais afoitos farejavam ruidosamente em busca do odor da lentilha e das folhas de louro. Recebi uns poucos presentes, mas nada superou um que chegou com um embrulho e estendeu-me o que parecia ser um livro. Antes, disse, "cadê aquela lentilha clássica?". Comecei a explicar e o sujeito puxou para si o pacote e disse "vim só pra te dar um beijo" e partiu.

Tudo era pânico. Os que tinham olhos de fome pediram caldinhos de feijão e eu os via comendo tristíssimos, muxoxando, reclamando, ameaçando não pagar. O que prendia as pessoas ali era o jogo Brasil x Guatemala. Eu era o canalha, o pulha que quebrava uma tradição de muitos anos.

A pilha de presentes, antes uma pequena torre, era, em determinado momento um morrote, as pessoas estavam recolhendo o que haviam me dado, não pela data, não pela data!, mas como paga pela lentilha que não aconteceu.

Noutra hora, juntei-me a uns cinco ou seis, ergui o copo e disse sozinho "saúde!", e o côro foi implacável, "à lentilha!".

Estava ficando exasperado e a Dani chegou a sugerir que eu fosse no Extra comprar "Sopa de Ervilha Meu Instante Maggi", o que considerei impraticável.

Os que se despediam - houve os que saíram à francesa - diziam entre tapinhas "ano que vem avise que não vai ter nada", "tchau, vou pra casa jantar", "que merda, heim!?", e tive a certeza, quando fiquei sozinho com a Dani numa mesa, do peso que tem uma tradição descumprida.

Até.

3 comentários:

Anônimo disse...

Como eu coloquei num comentário anterior. Sem a lentilha não tem graça.
Tradição é tradição...
E cá entre nós, vai dizer que você também não sentiu falta? Aquela cena das pessoas esperando ansiosas o grito: "A lentilha está servida". E elas correndo para o caldeirão, disputando a concha quase que a tapa, catando os pedaços de paio. Comendo rápido, já de olho no segundo caldeirão, que não sei o porquê, sempre vem melhor que o primeiro. Cada um, com uma educação britânica, repetindo, pelo menos, três vezes.
Isso faz parte do seu aniversário, queira você ou não.
Abs

Anônimo disse...

Como falei, evito enterros, não vou pelo morto. Nos aniversários a regra em geral é outra. Mas no seu... Ousado o teste de cortar a lentilha, afinal, a SUA lentilha é muito boa. Acho que os amigos não decepcionaram, não largaram o morto, mesmo sem lentilha.

Anônimo disse...

Comparar o aniversariante a um morto e a comemoração a um enterro é no mínimo original... :)
Betinha