8.8.05

NA CABEÇA

Osório almoçou, lambeu os beiços, comeu chorando comovido, abriu uma garrafa de Chateau Duvalier tinto que guardava deitada no armário embaixo da pia. Voltou ao Estephanio´s por volta das quatro e meia da tarde.

Ainda no balcão, Dedeco e Branco. Bule já tinha chegado, Amorim também. Osório juntou-se a eles, já tinham bebido um engradado.

"Quem é?", perguntou baixinho Osório, enchendo seu copo, apontando pro sujeito sozinho do lado de fora.

"Um corno", respondeu Branco, arrancando risada de todos, "O balofo chegou aqui às onze, pediu uma garrafa fechada de Fogo Paulista e tá ali, ó, faltando uns quatro dedos, falando sozinho feito um maluco, a cara enterrada no copo. Volta e meia nos encara e diz que é corno".

"Ô, putão! Junte-se aos bons e serás um deles!", tentou agradar o velho Osório, pondo as mãos no ombro do infeliz.

"Putão, não. Corno. Falou comigo?", respondeu levantando a cabeça, os olhos inchados de tanto chorar.

"Não. Não fode então! Fica sozinho, porra!"

Um arroto, que seu Osório arrota como quem respira.

Waldomiro foi até o balcão, tropeçando, estava tortaço, o terno marrom todo amarfanhado, o sapato por engraxar, a gravata sebenta, o colarinho da camisa puído, as unhas imensas, anéis de prata sujos em quatro dedos, um bafo de anestesiar. Apoiou-se na geladeira: "Minha mulher, meus amigos, minha mulher... eu tava sentindo ela estranha, tá certo que o negócio lá em casa não andava nada bem, quase um ano sem furar Maria Rita, apesar de toda noite sentir aquele calcanhar roçando no meus pés, mas, porra, o ramo de seguros tá uma bela merda, eu sou corretor, tô devendo IPTU, taxa de incêndio, vendi o carro, o telefone vai ser cortado a qualquer momento, condomínio, minha gente, vai fazer seis meses que não pago, deixei de contribuir com o PT, cancelei nosso seguro-saúde, perdi o crédito na praça, tô devendo uns quatrocentos paus entre açougue, butiquim e jornaleiro, como é que ia conseguir, porra?... Até tentei vender umas apólices de seguro estranhíssimas pra uns bacanas vizinhos meus, uns famosos lá da área, salguei o preço pra ver se conseguia saldar as dívidas, peguei pesado mesmo, mas, porra..." – começou a chorar comovendo os companheiros do bar –, "... falando na lata, não tinha outra saída a não ser cagar pros escrúpulos, rasguei os códigos de ética do partido socialista que ajudei a fundar, desculpa aí porra, mas fuder duro desse jeito é foda..."

"Ah, mas isso passa, amizade, isso passa...", falou Amorim enchendo o copo de Waldomiro.

"Passa porra nenhuma... eu descobri hoje pela manhã que eu sou é CORNO, porra, isso não passa não, na próxima encarnação eu já nasço corno..."

"Que é isso, irmão? Como é teu nome?"

"Roberto Waldomiro. Aliás, podem me chamar de Waldomiro mesmo, aliás, Wal...domiro..." – soluçando de puro porre – "...é a puta que me pariu, meu nome é COR-NO..."

Neguinho não disfarçava mais que o lance estava ficando divertido.

"Conta aí pra gente, Wal, que história é essa?"

"Wal não, eu sou o CORNO! Porra, saí cedo hoje, antes das nove, dei uma passada no bar pra tomar o primeiro reforço do dia, o cara me disse logo, “ou a conta ou nada”. Fui meio de sorriso amarelo até a banca comprar o jornal e uma raspadinha e o viado do lado de fora, “nãnãninãnão”. Fui tentar mais fiado no açougue, Maria Rita queria porque queria fazer um ensopado de fígado pra janta e, mal cumprimentei o cara, ele berrou de dentro do frigorífico, “se manda daqui, boi gordo”. Tava atrasado pro serviço, moro no Grajaú, tinha que estar no banco antes das nove e meia na Praça Pio X, no Centro. Tentei sacar algum num caixa 24 horas pra pagar o táxi e a telinha piscou “cartão cancelado”, engolindo meu Visa, não consegui pagar as quatro últimas faturas. O que é que eu ia fazer, poxa?..." – chorinho de criança. "Fiquei ali pela área, meio zonzo, lembrei da conversa de Maria Rita na hora do café da manhã, tentei jogar um caô pra cima do apontador do bicho, disse a ele que jogasse cinco reais na borboleta e pedi que me desse quarenta e cinco adiantados, eu deixaria minha identidade com ele como prova da minha honestidade, se não desse borboleta – Maria Rita me disse pela manhã que sentia-se leve como uma borboleta –, eu devolveria a grana, dava um jeito lá no banco de tomar algum emprestado; se desse na cabeça, ele ficava com os quarenta e cinco que faltavam do prêmio, o sujeito me mandou à merda, o cara tá até certo, né?, mas disse “vai à merda, seu corno!”, sabe como é, o “corno” dito de boca cheia, com vontade..."

"Porra, mas também, que papo, heim, camarada...", disse o Branco pedindo um salaminho fatiado ao Erasmo. "Aliás, Erasmo, que bicho deu no sorteio das duas horas?"

"1515, borboleta!"

" Pôta!", disse arrotando Osório.

"Borboleta, tá vendo só que merda? Aí, porra, nem sei porque me deu esse troço de correr atrás, né?, liguei a cobrar do orelhão pro meu chefe pra avisar que ia chegar atrasado, tomei um esporraço, com razão, né?, mas é que o tal cara tinha me chamado de corno, não me caiu bem aquilo, fiquei com a pulga atrás da orelha..."

"Com a borboleta atrás da orelha...", Branco não perdia uma, "...mas e aí?"

"Onde fica o banheiro?"

"Ah, não, porra, conta primeiro..."

"Aí que voltei pra casa a pé, uns seis quarteirões. O porteiro estranhou, né?, me disse que Maria Rita estava em casa, que tinha subido há uma meia hora um bombeiro lá pra casa, provavelmente, pensei eu, a fim de consertar o aquecedor, quebrado desde fevereiro. Porra, minha gente, eu não tava nem podendo consertar aquela joça, como é que Maria Rita ia pagar o cara? Subi de escada, moro no nono andar, tão puto que estava."

"E aí? E aí?", quase que em côro uníssono.

"Daí que quando cheguei no corredor pus o ouvido na porta e escutei o maior esporro vindo lá de dentro. E era a voz da Maria Rita, gente..." – pediu mais uma dose de Fogo Paulista, Branco encheu o copo do coitado, Waldomiro entornou tudo de uma vez. "Ela gritava uns troços tipo “me bate, bombeiro, espanca a tua vaca, meu bombeiro”, um horror... Larguei a pasta no chão e joguei esse corpinho de corno que vocês estão vendo – Waldomiro não pesava menos de cem quilos – em cima da porta da cozinha e... o banheiro, onde fica?"

"Porra, corno, conta logo!", escancarou Branco.

"Bom, tava lá, o aquecedor montadinho no lugar e minha Maria Rita nuazinha com as costas no azulejo, um crioulo imenso, de cueca preta, sentado sobre ela, enchendo a vagabunda de porrada na cara..."

" Hum, e aí?"

"Aí nada, né, porra? O que é que ia fazer? Fiz papel de babaca, chorei, amontoou uma porrada de vizinhos no corredor, os dois se trancaram no quarto de empregada, uma cagada, devem ter ido acabar o serviço ou fugir de um linchamento, sabe como é o Grajaú, bairro conservador, eu peguei a pasta e saí gritando “eu sou um corno, eu sou um corno!”. Dona Nancy, nossa vizinha de porta ainda me disse antes de eu entrar no elevador, “Eu sempre soube que sua esposa era uma bela duma vaca, como ela bem estava anunciando”".

Sentou-se no chão aos pés do balcão. Não parava de chorar. Dedeco chamou o Erasmo: "Corre lá na esquina, Erasmo!. Gente, dez pratas de cada um, eu, Osório, Dedeco, Amorim, Bule, Erasmo, entra você também, Erasmo... Pega lá dez reais com o Juca da barbearia e com o Carne-Seca, inteira com mais vinte meus, aqui... Joga cem na vaca. Na cabeça. Corre que são vinte pras seis. Levanta aí, Waldomiro, larga de ser besta, bebe uma água, vai..."

E o Waldomiro, sem um dinheiro no bolso, puto com a possibilidade de perder outra vez a chance de ganhar um troco. Adormecera numa mesa para onde foi levado por Branco e Dedeco, “o corno desmaiou”, disse Bule.

Quando Erasmo voltou com o bilhete faltavam cinco minutos para as seis horas. Vidal chegou, inteirou-se da novidade, Quincas estacionou o táxi trazendo uma passageira.

Quando Venceslau, o apontador do bicho na área, apareceu na esquina pra pregar o resultado no poste em frente ao bar, Osório foi em sua direção discretamente, enquanto todos contavam a história do dia pro Vidal e pro Quincas, e pediu o resultado do jogo. Deu dois tapinhas em seu ombro e disse “deixa que hoje eu anuncio”. De volta, subiu numa cadeira e pediu silêncio. Arrotou. Mandou que acordassem o corno.

"Que foi?!", perguntou Waldomiro.

"Seus putos, atenção. Atenção novo puto, atenção corno pé-quente!", disse Osório pondo os óculos. "Quatro mil oitocentos e noventa e sete, porra! Deu vaca na cabeça!!!!!"

Mafuá. Osório desceu da cadeira, convocou uma assembléia em frente à delicatessen do Carne-Seca, Waldomiro desolado na mesa apenas com Vidal e Quincas.

" Não é possível, porra... além de corno sou um babaca. Deixei de cravar borboleta e vaca num mesmo dia..."

"Ô, Waldomiro...", disse seu Osório de volta, abraçando o gordo, "ô, meu querido..."

" Que foi agora, porra?...."

"Seguinte: amanhã de manhã Quincas vai de táxi levar Seis-com-Fome pra tua casa a fim de consertar a porta da tua cozinha. Quando acabar o serviço vocês voltam aqui pra tu pegar teu prêmio de mil e oitocentos reais, certo? Larga de ser bobo, rapaz, teu azar foi ter flagrado a patroa, nenhum homem, fora eu, que Idinha era uma santa, todo mundo sabe disso, tá livre de ser corno. E você foi corno espada, porra! Veio encher a cara, chorou... Isso é que é ser corno! Quincas vai te levar em casa agora, vai lá, faz as pazes com a tua Maria Rita, pede desculpas, fura – com todo respeito, amigo, foi você quem usou essa expressão – a tua mulher e avisa que amanhã você tá pintando na área com quase dois mil na mão..."

Waldomiro nem podia acreditar naquilo. Voltou com Quincas, entrou em casa, encontrou Maria Rita aos prantos na sala, que lhe disse: "Pô, mozinho, quase um ano sem... você tem que me entender..."

"Entender porra nenhuma, vem cá, sua vaca, que tu vai ver o que é bom!"

Treparam como nunca fizeram desde casados. Quando Waldomiro acabava de dar a terceira, Maria Rita disse ronronando, “viu como você sabe cuidar da sua cachorrinha?”.

Ele já tinha palpite para o dia seguinte.

Até.

PS: o Buteco, que não pode e não deve parar, torce, desbragadamente, pela recuperação do Fernando Toledo, vítima de um atropelamento na noite de sábado, que o fez estar, desde então, no CTI, em coma. E eu quero dizer, desde já, que ele, que me chama de "Vossa Goldemblância", que chama o meu irmão Szegeri de "O Impronunciável", tem que se recuperar, porque eu não agüento mais perder amigos. Força, Toledão! Eu acredito na força do pensamento, porra! E ontem, coisa que não é do meu feitio, bebi cachaça em quantidade industrial durante a festa do Augusto, sempre em tua homenagem, e por você, que do jeito que você está, imagino a tua dor por isso, beber não é ainda possível. Espero você, malandro!

8 comentários:

Anônimo disse...

POW! Não disse que o Edu PINTAVA e não apenas escrevia?

Obra-prima, Eduardo. Vi, juro que vi, o Osório, os personagens todos, com clareza de pintura premiada.

Nota 1000, cara. Viciei.

Anônimo disse...

Eduardo,

Asim é sacanagem. Tava me dobrando de rir com seu texto quando, na nota final, veio essa notícia sobre o Toledo.

Eu ía até comentar que não sei porque você é acusado de aumentar as histórias, já que essa, com todos esses detalhes, é perfeitamente factível.

Mas essa nota final sobre o Toledo me entristeceu profundamente. Não há de ser nada, eu espero, vamos ficar aqui na torcida, porque não há outra coisa a ser feita.

Aguardo notícias melhores sobre o Fernando Toledo, com urgência. Não me decepcione, porra!!!!

Anônimo disse...

Oi Edu eu não conheço o Fernando Toledo mas estou do teu lado torcendo pra que ele saia dessa. Quanto ao texto, é mesmo de bater palma de pé, cara! Muito bom, muito engraçado, coisa de chefe! Eh eh eh!

Anônimo disse...

Eduardo, procurei por todo o seu blog e não localizei um email para contato. Você poderia dizer para onde devo escrever? Gostaria de trocar umas palavras com você. E parabéns por tudo isso que você escreve. Muito bom.

Anônimo disse...

Edu,
O texto é realmente muito engraçado e bem feito!
Porém, tive que ler duas vezes o PS para acreditar no que lia!
Estou na torcida pelo Toledo!
Nos dê notícias!
Abraços,

Eduardo Goldenberg disse...

Obrigado a todos pelos elogios e pela solidariedade na torcida pelo Toledo.

Renato, meu email é edugoldenberg@terra.com.br

Anônimo disse...

Uma senhora crônica! E estou junto na torcida pela recuperação integral do Toledão. Não fazemos por menos!

Anônimo disse...

Parabéns, Edu. Seu texto está MARAVILHOSO.
Beijos!