14.12.06

SEU OSÓRIO, CONSELHEIRO

Quinta-feira, oito horas da manhã. Seu Osório, naquela disciplina que só os velha-guarda têm, deu o tapa de todos os dias no balcão, e o Zezinho, naquela presteza que só os garçons de Nova Russas têm, pôs, em segundos, o sagrado café pingado e a canoa encharcada de manteiga diante do velho que, agradecendo como de costume, arrotou altíssimo enquanto mexia o café com leite com metade do pão francês, fazendo o papel de colherzinha. Ficou olhando pra dentro daquele copo americano, o líquido gorduroso, tascou a primeira mordida no pão encharcado e diante do inevitável e grosso pingo que sujou a camisa, soltou:

- Pôta! - e arrotou de novo em seguida.

- Que foi, seu Osório?

O velho virou-se e viu o menino sentado à mesa.

Virou-se em direção ao balcão, de volta, e perguntou ao Zezinho, de boca cheia:

- Quem é?

- Filho do doutor Tiago, novo vizinho da Graça, sua santa filha... - e esboçou um sorriso de canto de boca.

- Tá rindo do quê, fidaputa?

- Nada não... Nada não...

Tornou a pousar os olhos sobre o menino.

- Como é teu nome?

- Sérgio.

- E como é que tu sabe meu nome, putão?

- Quem não conhece o senhor aqui?

O velho Osório gostou do que lhe soou como deferência. Fez um sinal pro menino, como que anunciando que ia se sentar à mesa.

- Senta aí, seu Osório...

O velho sentou-se, pousando o copo e o pratinho com a outra metade da canoa.

- Quantos anos você tem, moleque?

- Dezesseis.

- Tá indo pro colégio, garoto? - disse de boca cheia apontando pros livros diante do menino.

- Tô não, seu Osório... Tô na fossa...

Seu Osório soltou uma gargalhada acompanhada de um tabefe na pilha de livros do garoto. E disse, virando-se pro Zezinho:

- Veja isso, Zezinho! Dezesseis anos e na fossa! Traz uma cerveja pro menino!

- Quer, Serginho? - perguntou o Zezinho.

- Eu disse traz uma cerveja, pôta!

O menino parecia encantado diante do mais comentado personagem daquela bucólica rua do bairro de Vila Isabel.

Zezinho pousou a garrafa diante dos dois, recolheu o prato e o copo com o café da manhã do velho Osório, e, quando foi servir a cerveja, o comandante do pedaço esbravejou:

- Eu sirvo, fidaputa! Obrigado!

Serviu o menino primeiro, depois a si mesmo. Serginho esperava o primeiro gole do seu Osório, para quem olhava - era nítido - como a um ídolo, quando o velho, numa única talagada, secou o copo. Imitou-o. Osório serviu-os novamente, passou a mão na cabeça do garoto - era dado a esses arroubos de carinho com os mais novos - e disse:

- Desembucha! Na fossa por quê?

- Ah...

- Conta. Confia em mim. Desembucha!

- Ontem fui apresentado a uma menina que mora ali na Dona Maria... Na vila, sabe? Prima mais velha de um colega meu de colégio... Uns vinte e cinco anos, eu acho... Que linda, seu Osório! Que linda! E mora no Méier... sozinha! Parece que estuda na Gama Filho...

- Sei... Zezinho... Mais uma!

- Linda, seu Osório... Linda... Pensei nela a noite inteira...

O velho, não escondendo a excitação, vivendo as emoções do menino que há muito deixara de ser, com o copo emborcado, disse:

- E aí? E aí?

- E aí que eu tenho namorada, seu Osório. Gosto dela. Acho que sou apaixonado. E sou fiel. Daí meu drama...

O velho então transtornou-se. Soltou um arroto de fazer o garoto virar o rosto. Levantou-se. Pediu uma outra garrafa ao Zezinho. Deixou cair um ou dois livros no chão. Tomou a garrafa das mãos do Zezinho, puxou a cadeira, repetindo um gesto seu já clássico, e o menino de olhos arregaladíssimos atento a cada movimento do seu Osório.

Disse o velho:

- Zezinho... Segura a cadeira aí... Vou subir, vou subir!

Vinha chegando o Bule, que gritou:

- Mas já? - e gargalhou.

Seu Osório já subindo na cadeira:

- E tem hora pra isso, ô, balofo?! Vou discursar! Vou discursar!

- O que é que houve, seu Osório? - disse o Bule cumprimentando o menino com a cabeça.

- É o seguinte, meus amigos... Silêncio, porra! Silêncio! - e esse pedido de silêncio era meramente feito por hábito, já que Serginho, Zezinho e Bule estavam rigorosamente mudos diante daquela cena inédita àquela altura da manhã.

Ajeitou os óculos e cravou o indicador em direção ao Serginho, de olhos brilhantes e vidrados.

- Deveria ser vedado a um menino de sua idade, apaixonar-se! Deveria ser proibido o direito à fidelidade!!!!! Mais grave! Mais grave! Deveria ser obrigação o descompromisso! Deveria ser imperativo o viver à disposição das moças em flor, porra!

Uma lágrima corria dos olhos do velho Osório.

- Tá chorando, meu velho? - provocou Bule, cutucando Zezinho.

- Não, ô, babaca! Tô mijando pelo olho!

Serginho riu.

Prosseguiu:

- Isso, menino! Sorria! Sorria e coma as moças que te chegam! Sorria e desfaça esse namorico! Tenha vinte e cinco, trinta anos, e aí sim tu amarra teu burro nas coxas de uma mulher! Agora, não! Agora, não! Ou te arrependerás amargamente! Ouviu, putão? Ouviu?

Serginho fez que sim.

- Dá a mão aqui, porra! Ajuda! - disse em direção ao Zezinho.

Desceu, abraçou-se ao menino - que também chorava - e pediu mais uma garrafa.

- Ihhhhh... O menino também tá chorando, ó só! - era o Bule de novo.

- Tô mijando pelo olho também, seu Bule!

Seu Osório, tal como fizera com o Vidal há alguns anos, adotara o garoto. Selaram, ali, uma relação de amizade de infância.

12 comentários:

Anônimo disse...

Oba, Edu!! Seu Osório de novo! Grande personagem! Grande figura!

Anônimo disse...

Eu tenho muita vontade de conhecer o seu Osório desde que li seu livro. Bj.

Anônimo disse...

Ele voltou!!! Mijando pelo olho estou eu de tanto rir.

Eduardo Goldenberg disse...

Renato: valeu! Você é mais um dentre tantos - acredite! - fãs dessa impoluta figura que é o velho Osório, de quem tenho a honra de ser amigo e companheiro de copo!

Ane: apareça na esquina sagrada, ué! Quem sabe você não dá a sorte de esbarrar com o velho?

Anônimo: quem és tu, criatura?

Anônimo disse...

Anônimo sou eu, Marcão. Sei lá por que cargas dágua saiu anônimo.

Eduardo Goldenberg disse...

Grande Marcão: o velho Osório nunca deixou de estar presente, mano velho! Eu é que - num vacilo quase que indesculpável - deixei suas monumentais histórias, todas reais, de lado! Abração.

Anônimo disse...

Caraca, Edu, assim como Marcão, tô mijando pelos olhos até agora de tanto rir do Seu Osório e do Zezinho! (Meu amigo de serviço, o Samuel, até se espantou com minha gargalhada bem sonora, hehehe...)

Anônimo disse...

Sem brincadeira.

AHUAHUAHUAHU!

MIJAR PELO OLHO foi uma das suas melhores DISPARADO! (eu mesmo estou mijando pelo olho só que de tanto rir)

Luiz Antonio Simas disse...

Que beleza!! Acabei de ler. Merece a medalha de Prata!! beijo

Luiz Antonio Simas disse...

O pai me disse, que a tradição é lanterna, vem do ancestral é moderna...Cabô meu pai!

Anônimo disse...

Eu sabia que o Zezinho era de Nova Russas. Podem perguntar nos butecos, nos tais pés-limpos, nos restaurantes, etc, de onde vêm os garçons. Em cada 10, 9 vieram do Ceará. E de cada 10 que vieram do Ceará, 9 vêm da região de Nova Russas, que abrange também Ipu, Ipueiras, Hidrolândia e Reriutaba. Com predomínio absoluto de Nova Russas, a capital do pólo garçonífero brasileiro, quiçá mundial.

Eduardo Goldenberg disse...

Felipe: compra meu livro e dá de presente pro Samuel!!

Sérgio: lamento informá-lo. A expressão "mijar pelo olho" é do velho Osório, não é minha.

Simas: obrigado, querido, pelo título. Ele leu, aliás?

Zé Sergio: e quer ver a importância da cidade, malandro? Clica aqui!!! Abração!