13.6.07

HERANÇA

Dentre as incontáveis e inarredáveis lições contidas na colossal herança que minha bisavó me deixou - minha saudosa bisavó, a conheça aqui - está uma que eu, confesso cheio de um evidente orgulho, aproveito, mas aproveito mesmo; a de lembrar, sempre, dos entes queridos durante um rega-bofe. Explico.

Eu era bem pequenino e notava, desde cedo, um alvoroço pelos corredores da casa. Minha vó pra lá, tia Idinha pra cá, minha bisavó comandando a ordem-unida, e sempre que seus olhinhos pousavam sobre mim, eu muito atento àquele movimento, ela dizia:

- Hoje há uma pândega daquelas!

O que significava dizer que ela sairia elegante, de vestido estampado, estola, rede nos cabelos e uma bolsa gigantesca sem nada dentro. Uma bolsa gigantesca sem nada dentro e forrada com guardanapos - não havia, ainda, o papel laminado - para acondicionar salgadinhos, docinhos e pedaços taludos de bolo. Tudo para os bisnetos. Uma generosa, minha bisavó.

Cresci, notem bem, encantado com tamanha devoção. E nunca - e digo nunca com a ênfase szegeriana - deixei a peteca cair, desde que dona Mathilde cantou pra subir. Imito-a deslavadamente e o faço com uma emoção indizível. Sinto, durante a subtração dos doces - desconheço a razão pela qual desprezo o furto dos salgadinhos - como se suas mãos tocassem as minhas, numa espécie tijucana de psicografia onde o lápis é substituído por brigadeiros, olhos-de-sogra, bem-casados, e os bolsos de meu terno fazem o papel da folha de papel sobre a qual o médium trabalha.

Sábado passado foi assim.

Foi assim e eu, como sou preciso do início ao fim, quero lhes provar que o que conto é a mais absoluta expressão da verdade.

Tínhamos, eu e Dani Sorriso Maracanã, um casamento à noite.

Como é praxe, chequei pela manhã o estado dos bolsos, a integridade da costura, a resistência dos forros. Dani, que é de Volta Redonda (uma Tijuca com ar mais pesado), testava diversas bolsas para ver qual oferecia maior espaço interno. Valia-se de bombons Sonho de Valsa para os testes:

- Eles têm o tamanho da média de doces de casamento!

E lá fomos nós.

Chegamos. Em menos de cinco minutos eu já havia mapeado o terreno. Sentamo-nos, eu, Dani, Betinha e Flavinho. Fiz sinal pro garçom:

- Pois não, senhor...

- Uísque, por favor!

- Senhor, temos ordens da noiva para só servir depois da ceri...

Eu estendi uma nota de dez reais:

- Quantos copos, senhor?

Enquanto os grã-finos - ou os supostos grã-finos - se debruçavam numa espécie de vale para assistir à cerimônia, nós bebíamos de maneira torpe até que bateu a fome. Tornei a chamar o pingüim:

- É coquetel ou jantar?

- Os dois, senhor...

- Cadê?

- Senhor, temos ordens dos noivos... - a mão já estendida.

Flavinho pôs outra nota de dez na mão do caboclo e os salgadinhos começaram a chegar.

E assim transcorreu a festa. Até que eu disse à Dani:

- Vamos?

- Arrã. Vamos!

Fui à mesa de doces, essa invenção maravilhosa que facilitou demais as ações de subtração dos mesmos, e comecei. Nos bolsos laterais, os bem-casados. Empilhados um a um, com cuidado, e eu pensei na Magali, na Maria Helena, na Ana Clara. Nos bolsos internos, os brigadeiros, as trufas, os doces mais elaborados, todos acondicionados em guardanapos afanados comme il faut e foi a vez de me lembrar da mamãe e do Fefê. Com os bolsos esgarçados, dei um, dois, três, quatro quiques para acomodar os doces. Obtive êxito. Uma senhora do cerimonial me olhava com olhar de reprovação e eu me dirigi a ela:

- Algum problema?

- Não, imagine... - disse debochada.

- Ainda bem. Ainda cabem mais alguns.

E fui à mesa, onde recebi o abraço da Dani, que estendeu-me a bolsa:

- Encha! Encha!

As mulheres me olhavam admiradas. Estenderam suas bolsas e pediram pateticamente:

- Completa a minha depois?

- Você pode encher só com trufas?

Atendi a cada um dos pedidos.

E partimos, felizes, eu com a sensação do dever cumprido.

No dia seguinte de manhã convidei Magali e as meninas para um almoço.

- A sobremesa é surpresa! - eu avisei.

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Até.

4 comentários:

Anônimo disse...

cada um suborna como pode...

4rthur disse...

deu fome...

Anônimo disse...

Graças aos trabalhos do Edu, fiz a festa dos porteiros com 15 (QUINZE!) bem-casados!

Lunna Guedes disse...

É a primeira vez que aqui chego... Um encontro estranho (mais pela sensação)... Saboroso pela foto e engraçado pela leitura. Já vi muitas pessoas em festas fazendo isso...
Não gosto de festa e tão pouco de doces de festas e de salgados (menos ainda)...
Gosto verdadeiramente de um chá nas mais diversas horas do dia.
Mas sua descrição está apetitosa...
Abraços matinais, com preguiça pelas minhas laterais (o dia está só começando).