12.10.08

A TIJUCA EM ESTADO BRUTO - XII

Eu tenho tido a tendência, mais recentemente perceptível, de sempre, ao falar de minha avó materna, referir-me a ela como "a espírita", "a mulher capaz de fazer do Kardec um ateu", "a fanática pela doutrina", "a que dá ao Chico Xavier a dimensão de um gazeteiro", esses pequenos exageros capazes de dar a vocês, meus poucos mas fiéis leitores, a exata impressão que vovó causa em mim - e sempre causou, no que diz respeito à sua religiosidade. E quando eu fico me lembrando dessas demonstrações explícitas de resignação e de dedicação full time à doutrina por parte de minha avó (notem que o "full time" destoa, agudamente, do assunto), várias histórias me vêm à cabeça.

Minha bisavó - por exemplo. Católica fervorosa, tinha tendências ao espiritismo bastante evidentes. Aliás, minha bisavó dizia sempre:

- Meu filho... Como eu não sei quem manda lá em cima - e invariavelmente ela apontava para o alto com a ponta do leque fechado -, vou de "a" a "z"! - e morria de rir.

Mas era, para todos os efeitos, ao menos os visíveis, católica. Não dispensava, todas as manhãs, a sua reza, que levava horas e horas, o livro de missa nas mãos, os santinhos marcando as páginas que tinham que ser lidas (era quase um Céu, tamanha a quantidade de santos!), e sua irmã, tia Idinha, a seu lado cumprindo o mesmíssimo ritual, ambas com rede nos cabelo e as mesmas perguntas, decorridas algumas horas: "Já acabou?", "Falta muito?", essas bossas pagãs durante as orações. Tudo isso - que fique claro - na casa de minha avó, que morou por muito tempo com as duas, enquanto as duas foram vivas (minha bisavó foi na frente, tia Idinha foi um pouco depois).

Lembro-me dessa cena, muito viva, quando vovó morava no Lins, na rua Conselheiro Ferraz 88, em um prédio de tijolinhos e varandas simpáticas, com uma vista que me impressionava. Moravam, se não me falha a memória, no quarto andar (ou sexto, acho que no sexto andar!). E minha bisavó (vejam como dou rodeios para chegar onde quero), sempre dizia quando diante de alguma situação desagradável (podia ser o horário político, podia ser uma chuva torrencial que acabava com a luz na hora de sua novela, podia ser uma visita que se demorava demais):

- Isso, nem Cristo agüenta!

E minha avó, espírita à mais alta potência:

- Agüenta, mamãe, Cristo agüenta.

E minha bisavó sempre fazia uma cara de medo, que só vendo.

- Desculpa, filha. Não foi por mal.

Nessa época, é claro, vovó já freqüentava um centro espírita (freqüenta até hoje) no Andaraí. E eu ficava impressionadíssimo com a tenacidade de vovó. Tomava o ônibus, todas as segundas-feiras, sozinha (vovô não tinha ligação com religião), e ia para o Andaraí com um livro, sempre com um livro, debaixo do braço - livro espírita, é claro. E minha bisavó, sempre baixinho, pra tia Idinha (uma católica extremada que não admitia a vida após a morte) não ouvir, à saída de vovó:

- Peça por mim, minha filha! E veja se vem mensagem psicografada para mim!

Vejam que o vocabulário de minha bisavó católica, a naturalidade com que fazia o pedido, seriam, mesmo, capazes de arrepiar os cabelos azuis da tia Idinha. Vovó, moderna demais, dizia antes de bater a porta:

- O.K., mamãe! O.K.! - isso com o polegar apontando pra cima.

Até que um dia - e eu estava lá, lanchando, eu iria dormir lá naquela noite de segunda-feira, eu estava de férias e papai e mamãe nos deixaram, os três, dormindo na vovó - tia Idinha estava bem atrás de minha bisavó justo na hora da tal despedida de praxe, e disse, diante do "O.K." de minha avó:

- Pidoca... está me faltando o ar... não acredito no que eu ouvi!

Fazia um calor dos diabos. Minha bisavó, abanando o leque e lançando um olhar espetado em direção à irmã mais nova:

- Qual o problema, Idinha? Você não tem curiosidade de saber o que há do lado de lá? - e apontou com o leque, que foi fechado num gesto rápido, para a varanda e para o alto.

- Deus me livre, Pidoca! E fale baixo que as crianças estão à mesa!

Meu avô, impávido, sentado em sua bergére (estilo de cadeira que, durante anos, esteve à frente na preferência dos tijucanos), bebia sua dose de Teacher´s e fazia palavras-cruzadas fingindo não ouvir aquele diálogo.

Eu, Fernando e Cristiano, cotovelos sobre a mesa, não perdíamos uma fala.

- E o que é que tem as crianças? Isaac e Mariazinha também são espíritas! Elas são espíritas também!

- Não são! Não são! Não são, não! - gemia, entre dentes, a tia Idinha.

Fefê, provocando a velha Hilda:

- Que é isso, tia Idinha? Kardec é o maior!

A velhota segurou-se no bar, enorme, que atravancava a sala.

Eu, pegando carona, puxei o coral (meus dois irmãos me acompanharam):

- É! É! É! É Chico Xavier! É! É! É! É Chico Xavier!

O Cristiano, pra exasperar ainda mais a pobre velhinha, disse com a mão esquerda cerrando os próprios olhos, a cabeça baixa:

- Tia Idinha...

Ela, contrariada:

- O que foi, menino? Estás sentindo alguma coisa?

E o Cristiano, provocando:

- Eu sou médium.

Minha bisavó gargalhava, batendo com o leque na palma da mão esquerda.

Meu avô se servia de mais uma dose de Teacher´s, mas tinha sob o bigode o esboço do sorriso escancarado que jamais deu.

Tia Idinha fazia o sinal da cruz, balançava negativamente a cabeça, e ficamos ali, na sala, comendo devagarinho o lanche delicioso da noite, ouvindo o bate-boca carinhoso entre as duas irmãs, até que vovó, por volta das dez da noite, pôs a chave na porta.

-E aí? - minha bisavó, excitadíssima.

Quando vovó pisou em casa, ela continuou:

- Algum recado... - e fez a pausa misteriosa, apontando com o leque para o alto - ... para mim?

Vovó balançou a cabeça num "não" clássico, apontou o queixo pra tia Idinha, e disse:

- Para a Idinha!

E estendeu a ela um papelucho, no qual vimos uns garranchos.

Tia Idinha, em fúria, tomou para si o papel e o rasgou em dezenas de pedacinhos, enfurecendo minha bisavó:

- Mas que absurdo! Que absurdo!

E voltando-se para minha avó:

- O que dizia? De quem era a mensagem?

E vovó, espírita do início ao fim:

- E a senhora acha que eu li, mamãe? Não era endereçada a mim!

- Ora, bolas! Vá ser kardecista assim na China! Não há Cristo que agüente!

E minha avó, em tom de advertência:

- Mamãããããeee...

Notem vocês que, para mim, criança que eu era, as lições jorravam como água da fonte. E essas lições criavam, em mim, a identidade tijucana, mantendo-se cravadas em mim até hoje. Além das lições, criavam-se em mim os personagens vivos que me cercam, ainda. Era um absoluto delírio ver de perto - e reviver tudo isso, hoje, de novo, graças a mecanismos que aprendi a dominar - o duelo entre as duas cabelo-azul da família (tia Zirota tinha o cabelo cinza). Foi um delírio ver a metamorfose da vovó, de jogadora e fumante inveterada à espírita praticante incapaz de se render à curiosidade - às frivolidades, como ela gosta de dizer -, nesse específico caso que hoje eu lhes contei. Foi um delírio assistir, anos a fio, o mesmo filme, com os mesmos personagens, e ouço vez por outra as pedras de gelo batendo no copo do meu avô, o vento leve que brota do leque de minha bisavó, a reza católica apostólica romana de minha tia.

E adoro saber - mesmo, vovó delirará lendo isso - que eles três, vovô, minha bisavó e minha tia (para não ter de citar a parentalha toda) vira e mexe vêm me ajudar a contar essas histórias.

Até.

2 comentários:

Letícia Brito disse...

Eduardo,
Há algum tempo que acompanho suas histórias aqui no blog, e sempre sinto que fazem parte do meu cotidiano pois trabalho na Tijuca e vivo o Rio de Janeiro como você.
Não sou espírita mas pude me sentir parte da tua história e quase visualizar esta cena na minha sala pois moro no Lins, na Conselheiro Ferraz, 88 e torci muito para que tenha sido no quarto andar, talvez eu compartilhe o ambiente com estes espíritos iluminados...Beijo Grande, Letícia Brito

Eduardo Goldenberg disse...

Seja bem chegada, Letícia! Um abraço.