30.6.09

É A LAMA, É A LAMA, É A LAMA

Ontem fui ao centro da cidade render-me à necessidade tecnólogica, da qual fujo agudamente, e fui, como de hábito, tomar meu café coado no pano no CAFÉ GAÚCHO (não suporto o café expresso, que passou a requintes que fazem uma xícara custar o preço de uma dose de uísque). De posse de um pendrive (reneguei, o quanto pude, o dito cujo), atravessei a Rio Branco e tomei a direção da esquina da São José com a Rodrigo Silva. Dei de cara com um protesto contra o golpe que não é exatamente golpe em Honduras (não tenho paciência pra discutir o troço aqui). Recomeço a frase: dei de cara com duas placas onde se lia "ZELAYA JÁ" e "FORA MICHELETTI". Mentira, mentira. Eram três placas. Na terceira lia-se "O PSOL APÓIA O CAMARADA JOSÉ MANUEL". Três pessoas, uma delas gritando palavras de ordem num megafone amarelo e vermelho, seguravam as três placas (um cidadão de bermuda bege, camisa branca e colete - membros do PSOL fazem do colete um uniforme - segurava o megafone com a mão direita e com a esquerda sacudia a cartolina pregada num cabo de vassoura com a impactante frase oferecendo solidariedade ao presidente deposto). Um quarto membro do partido distribuía panfletos convocando o povo para o debate político que às sextas-feiras o PSOL promove no Buraco do Lume para, no máximo, seis gatos pingados.

Depois de atravessar o Buraco do Lume fui ao balcão.

E encontrei o Percival.

Não o via há - o quê?! - dez, doze anos.

- Perci! - fui efusivo.

- Como vai essa força? - ele respondeu com a frase-feita.

Fiz a ele, em menos de dez minutos, um breve relato desses dez, doze anos e ele cravou-me com uma pergunta:

- Você faz análise?

Mexendo o café por puro esporte (bebo café puro), fiz que não com a cabeça. Veio a sentença:

- Por isso.

Fiz cara de que não entendi.

- Por isso andas bebendo com essa regularidade doentia, por isso voltaste a fumar, por isso essa barriga de chico-bóia, por isso esses cabelos brancos.

Para provocá-lo, sem dar-lhe uma resposta, pedi ao Bira:

- Um chope na pressão!

E ele, com carinha de nojo:

- Sai dessa lama!

Estendeu-me um cartão:

- Liga pro doutor. Te fará um bem tremendo.

- Você enlouqueceu, Percival?! Não nos vemos há dez, doze anos, e você vem com esse papo?! Ô, troço chato!

Ele ajeitou os óculos e disse:

- Quem mais precisa do tratamento é quem mais o rejeita...

Bebi o chope. Pedi outro. E ele:

- Sai dessa lama, Eduardo... Sai dessa lama!

Aproxima-se do balcão o pobre-diabo que distribuía os panfletos do PSOL. Estende um para o amigo a quem, àquela altura, eu lamentava ter encontrado. O Percival recebe o folhetim, lê o texto, dobra a coisa e guarda no bolso. Estende, em seguida, um para mim. Eu faço outro sinal pro Bira e digo:

- Não, obrigado.

O pobre-diabo continua distribuindo os santinhos entre a assistência que está no bar. O Percival:

- Não por que?!

Não respondo.

- Teu caso é urgente. Sai dessa lama! Sai dessa lama!

Despediu-se de mim, tirou o casaco (foi quando eu vi em sua lapela o bottom do PSOL) e saiu em direção à rua da Assembléia fazendo que não com a cabeça.

E eu ali, indo para o quarto chope, enterrado na lama imaginária que o amigo de outrora enxergou.

Até.

29.6.09

CENAS TIJUCANAS

Reuniu-se ontem, desde o começo da manhã, uma turma que vou lhes contar. Feita a feira, fomos ao BAR DO CHICO, eu e Luiz Antonio Simas. Aos poucos a mesa foi crescendo, e vieram Felipe Quintas (El Pipo) - ansiosíssimo com a disputa pelo terceiro lugar na Copa das Confederações entre Espanha, seu país do coração, e África do Sul, do nosso bravo Joel Santana), e meu cunhado, Marcelo, que veio de Guarulhos pra conhecer a esquina, e Carlos Andreazza (egresso do jogo que sagrou o Flamengo bicampeão brasileiro de basquete), e José Sergio Rocha, e nosso xerife, o Flavinho com sua Betinha, e mais e mais e mais e mais (ando discretíssimo, não há razão para lhes contar tudo).

O que quero lhe contar é que assistíamos ao Brasil e Estados Unidos pela final da Copa das Confederações na menor TV da cidade (peço o testemunho dos presentes). Na contramão da moda que pede televisões de LCD gigantescas (as mais humildes biroscas têm dessas televisões), o BAR DO CHICO mantém pendurada no teto uma 14 polegadas com bombril na antena (o bombril foi trocado ontem, segundos antes do jogo, pelo próprio Chico).

O jogo foi aquela chatice, viramos o primeiro tempo perdendo de dois a zero mas a camisa canarinho (menosprezada por grande parte do time no final da partida que preferiu exibir ao mundo seu amor, sua devoção e sua fé em Jesus, deixando pra lá o orgulho de vestir a mais respeitada camisa do mundo) falou mais alto e vencemos por três a dois.

Pausa: independentemente das regras da FIFA, fosse eu dirigente da CBF e os jogadores seriam proibidos de exibir qualquer mensagem antes, durante e depois das partidas. Vivemos num país laico e essas demonstrações de cunho religioso (para não ter de me estender mais) são lamentáveis. Cada um que cuide de sua fé dentro de casa. Voltando.

O que queria lhes contar é apenas o seguinte: no instante em que o Brasil marca o terceiro gol, na cabeçada do Lúcio, vira-se um biriteiro que assistia ao jogo de pé, no balcão, e grita de braços abertos como um Cristo Redentor se dirigindo à Estátua da Liberdade (para delírio da assistência):

- The house is down!

Até.

ATORES E ATRIZES DE TEATRO

Eu não sei se vocês têm essa sensação de vez em quando, se passam pela mesmíssima experiência pela qual passei sexta-feira pela manhã (repeti a palavra "pela" de propósito), por isso quero dividir esse troço com vocês, meus poucos mas fiéis leitores. Li, pouco antes da hora do almoço, o texto BODAS DE PRATA, escrito por meu queridíssimo Luiz Antonio Simas, em seu HISTÓRIAS DO BRASIL (o melhor blog do Brasil na opinião de Carlos Andreazza, com o que concordo). Leiam aqui, leiam!, por favor.

Quando bati os olhos no título, disse de mim para mim:

- Vai falar do Tiago Prata.

Entretanto há uma aridez absoluta do violonista no curso do texto (que eu gostaria de ter escrito, eis o que eu queria desde o início lhes dizer). Mas se lá não está o menino Prata (não mais tão menino, diga-se), está enterrada uma verdade acachapante que foi, justamente, o que mais me doeu não ter exposto antes do bardo da Lúcio de Mendonça: atores e atrizes são atores e atrizes vinte e quatro horas por dia. Explico.

Fingem, fingem, fingem.

Fazem tipo, todo o tempo, e tem um ar blasè que eu vou lhes contar, é espeto (estou relendo, pela - o quê? - décima, vigésima vez, toda a obra rodrigueana).

Há, no prédio em que moro, um ator.

Faça o tempo que for, chova, faça sol, uma canícula africana, e lá está o ator de cachecol.

Refiro-me, por óbvio, ao ator-jovem (é o único ponto do qual discordo de Luiz Antonio Simas, acho que a velha-guarda, na qual há também exceções, tem grandes artistas, grandes artistas!).

O ator-jovem diz, como quem respira, que "faz teatro". Ainda que não tenha, nunca, posto os pés num palco, ele diz que "faz teatro". Está sempre "estudando um texto", "envolvido num projeto" (que nunca se concretiza), quase sempre "fumando maconha para transcender", "fazendo Tablado", visitando exposições e achando o máximo instalações que não fazem o menor sentido (dia desses falo sobre as tais "instalações"), "participando de performances", freqüentando Santa Teresa (que ele chama, como de se esperar, de Santa), dizendo que é PSOL e fã da Heloísa Helena.

Pausa rápida (ou pano rápido, para que fique mais adequado ao tema de hoje): li, dia desses, nos jornais, que a ex-senadora Heloísa Helena referiu-se a uma colega vereadora (HH é, hoje, vereadora) como "porca trapaceira". Façam-me o favor. O homem que ocupa cargo público tem de ter, no mínimo, postura. Tem de cumprir alguma liturgia. E a brava ex-senadora, repreendida sabe-se lá por quem, saiu-se com essa:

- A vereadora Tereza Nelma colocou no bolso R$ 162 mil. Vereador pode roubar cofres públicos e não pode ser chamada de porca?

Não, não pode. Resultado: a vereadora Tereza Nelma ingressou com um processo por quebra de decoro parlamentar - no que fez muitíssimo bem.

A histérica ex-senadora vem perdendo a linha não é de hoje. E provando, cada vez mais, que não tem NENHUMA (com a ênfase szegeriana) condição de ocupar os cargos que almeja. Dito isso, em frente. Voltando.

Não, não vou voltar.

Não tenho, eis a triste verdade, mais nada para lhes contar hoje. Quer dizer, tenho. Mas o farei em outro texto.

Até.

26.6.09

O ALUNO DA PUC

Encontrei-me, ontem à tarde, de passagem pelo Buraco do Lume, com o aluno da PUC, aquele de quem lhes contei aqui. Não fui eu que o vi, mas ele a mim. Com os dois braços fremindo no ar como um náufrago em meio ao mar bravio, lembrando um daqueles bonecos infláveis de posto de gasolina, o pontifício gritava meu nome como um apaixonado. Meu nome gritado pelo estudante misturava-se ao côro de duas vozes que, em ritmo de marcha militar, pedia "socialismo e liberdade!, socialismo e liberdade!, socialismo e liberdade!". Era um pré-comício do PSOL, que acontece de segunda a quinta-feira anunciando o sempre apoteótico comício (não é comício, acompanhem meu relato) de sexta-feira e que reúne, num dia de mobilização aguda, cinco, seis pessoas (nunca vi mais de três). Pedi ao pontifício que aguardasse e fixei olhos e ouvidos no homem que, megafone amarelo e vermelho em punho, anunciava a mudança de nome da praça, de Melvin Jones para Mário Lago ("um projeto do PSOL!", bradava furiosamente a besta de bermudas) e convocava o povo imaginário à sua volta para o debate político do dia seguinte. Pausa: tremenda baboseira mudar o nome da praça. Aquilo ali é e sempre será o Buraco do Lume, mas o PSOL, vocês sabem, tem projetos incríves para a cidade. O PSOL, vocês sabem, também inova permanentemente. E o PSOL não promove comícios, mas debates políticos. Fui até o homem do megafone. Quando seus olhos cruzaram com os meus, ele largou o instrumento e abriu um sorriso santo (tive certeza, naquele momento, que eu era o primeiro homem a lhe dirigir a atenção). Diante de mim, disse:

- Pois não, companheiro! - e bateu uma continência inapropriada.

- O debate de amanhã é sobre o quê, hein?

Ele colou um adesivo com um solzinho no meu peito, acintosamente. Arranquei o troço e ele se ofendeu:

- O que é que é isso, companheiro? Nosso debate político de amanhã será sobre a elitização e a concentração da cultura na cidade. Os membros do nosso quadro farão uma expo...

Deixei o homem com boné de crochê falando sozinho e fui ao aluno da PUC.

- Como vai? - disse eu, polidamente.

- Ótimo! Estou me preparando para o show da Banga! - e esfregou as mãos como se tivesse uma lâmpada do gênio entre elas.

- Banga?

- Bangalafumenga. Farão show no sábado na festa junina da PUC.

- Sei.

- E mais o DJ Sadam! DJ Sadam, Edu!

- Arrã.

Contrangido com minha anti-empolgação, mudou o rumo da prosa:

- Já te falei sobre minha paixão pelo samba e pela Lapa de outrora?

- Não.

- Eu idealizo uma Lapa, sabe, aquela da década de 50, 60!

- Sei.

Como eu era cada vez mais um desinteressado, ele virou o timão mais uma vez:

- E naquele dia, quando falei do jazz... Poxa... Não quis menosprezar o samba, sabe?

- Sei, sei, sei sim.

- É que o samba pra mim é um espaço democrático, um lugar de todos. Aquele momento em que a cadência das batidas e dos acordes superam os sentidos racionais e fazem com que nos deixemos levar...

- Hum... deixar levar. Sei.

Inventei uma consulta ao dentista e me despedi apressado.

Até.

25.6.09

A FÚRIA ESPANHOLA

Estive ontem em São Paulo, 24 de junho de 2009, e mais uma vez em um 24 de junho, dia que é, para mim, mais solene que feriado nacional. Faz anos o homem da barba amazônica, quando seus amigos (que são muitos, sou apenas um deles, e seguramente o mais maltratado com requintes que só ele, sábio que é, conhece e domina) se reúnem para celebrar a data (eu diria que o dia de anos de Fernando José Szegeri é mais festejado que o Dia de São João no nordeste do Brasil). Mas não é ele o protagonista de hoje. É, de novo, esse boêmio, esse nostálgico, esse tijucano fundamental que atende pelo nome de Felipe Quintans, mais conhecido como Felipinho Cereal, que teve, no domingo passado, uma crise possessa e européia (relembrem aqui).

Estávamos almoçando no GALINHADA DO BAHIA, fabuloso restaurante ao qual, é preciso fazer justiça, o camarada Julio Vellozo há muito queria me apresentar. Pois estávamos lá, na rua Azurita, no Canindé, eu e (em ordem alfabética para não ferir suscetibilidades) Arthur Tirone (o Favela), Bruno Ribeiro, Fernando Szegeri, José Szegeri, Julio Vellozo e Marcelo Vidal (a Lenda). Comíamos o que vinha à mesa com fartura como homens de bem celebrando a vida e a arte do encontro quando um garçom da casa ligou a TV. E a TV transmitia, naquele momento, o jogo pela Copa das Confederações entre Espanha e Estados Unidos.

Àquela altura a seleção espanhola perdia por dois a zero (e de fato foi o placar final).

Conversávamos - sobre o quê, mesmo?, lembrei! - sobre a viagem do mano Bruno Ribeiro à Finlândia (o bardo de Campinas compareceu levando nos bolsos carpaccio de carne de rena e garrafinhas de Underberg). Mas foi ligar a TV para o Szegeri explodir à mesa:

- Edu! Ia esquecendo de te perguntar! Foi verdade aquele ataque do Felipinho, domingo passado, no Bar do Chico?! Ele disse MESMO - e valeu-se de sua ênfase - que torcerá pela Espanha contra o Brasil?!

Não respondi.

Como Favela e Vidal estavam à mesa comigo no domingo, cutuquei-os com os olhos:

- Cem por cento verdade! - disse um.

- Rigorosamente verdade! - completou o outro.

Eu pus exclamações na fala de ambos, mas o tom foi lúgubre.

Houve um alarido à mesa.

Incredulidade misturada com revolta, descrença com promessas de vingança, todo esse coquetel de sentimentos que o futebol desperta.

Vejam vocês que o pequeno grande homem anda, de fato, estranhíssimo.

Eu deveria ter percebido que havia algo de errado com o Felipinho antes mesmo do transe ibérico do domingo passado.

Dias antes bebíamos, os dois, uma cerveja de final de dia na QUITANDA ABRONHENSE. A TV noticiava a propagação dos casos de gripe suína no Brasil. De repente percebi que o cara transia, tremia, gemia de pé no balcão. Sapateava, de leve, como Carmen Amaya.

Pus a mão em seu braço:

- Tudo bem, cara?

E ele, com os olhos encharcados d´água, tocando castanholas imaginárias:

- Tenho saudade da gripe espanhola, Edu! Gripe suína é degradante! España! España!

E saiu rodopiando, toureando um miúra também imaginário pelo salão da quitanda. Depois de girar como uma piorra por uns cinco minutos, despediu-se da porta:

- Adios!

Até.

23.6.09

POSES, POSES, POSES

Andei recentemente - vocês que me acompanham sabem - falando sobre essa intrincada relação entre os homens e mulheres doentes da alma com seus bacanas (psicanalistas, precipuamente). Hoje mesmo, mais cedo, vim para o trabalho de ônibus, como de costume, e enquanto os pneus do coletivo deslizavam pela rua Alice meus pensamentos patinavam sobre as máscaras e poses dos envolvidos nas tais relações, os analisados e seus analistas, os bacanas. São um festival de poses. O olhar de um analisado é uma bomba atômica onde não há urânio, mas piedade. Ele olha, da cabeça do próximo à sola do sapato alheio, com um olhar pleno de piedade e superioridade. São meneios permanentes de cabeça que denotam pena, e os médicos da alma não ficam atrás. Fazem do silêncio seu cartão de visitas e moldam, dia após dia, suas máscaras de gesso das quais emerge uma superioridade ariana. Tudo pose.

Um sujeito sentado no banco da frente do ônibus ouvia, enquanto eu divagava, seu radinho de pilha (sim, era um radinho de pilha mesmo, não um desses aparelhos modernos). E ele ouvia Beth Carvalho batucando, não na caixinha de fósforos cada vez mais improvável, mas na pastinha de cartolina que carregava no colo. É incrível, mas não consigo ter certeza nem a fórceps de qual o samba que o sujeito ouvia, mas o samba era um sucesso retumbante da grande sambista (a maior, a maior, a maior). Disse a besta sentada ao meu lado, puxando papo:

- Crente que é sambista.

Eu, que não perco as chances de melhor conhecer o homem, nada disse, mas disse com os olhos um "hein?" que excitou meu interlocutor (uma besta, repito).

- Ouvindo esse samba aí, pô, tremendo sucesso, tremendo hit-parade, e se achando...

Eu nada disse e ele explodiu:

- Samba é raiz! Samba é Picolino! Picolino!

E ficou ali, repetindo o nome do velho portelense que já vaga pela pátria espiritual, como se isso desse a ele, a besta, o título de doutor.

O ônibus seguia o trajeto e já estávamos em Laranjeiras.

A besta desceu na altura da São Salvador e lançou, antes de tomar a rua, um olhar de nojo em direção ao feliz passageiro que ouvia, no instante em que estamos, um samba do Agepê.

Saltei no Largo do Machado junto com o rapaz do radinho e dei de cara com um mini-comício do PSOL bem diante da estação de metrô. O homem que empunhava o megafone falava para - o quê?! - uma pessoa estacada diante dele. E essa pessoa aplaudia freneticamente as botinadas verbais do socialista, quando me dei conta de que a máscara da besta do ônibus é freqüente nas rodas de samba que se espalham por aí, em todos os terreiros, os pequenos e os grandes. E explico.

Como se adquiridas na CASA TURUNA, essas máscaras são idênticas na forma: tem expressão de nojo, superioridade, e estão espalhadas pelas rodas de samba como nos consultórios dos bacanas ou nas mesas dos bares onde se sentam, com ares parisienses, os analisados e analisadas. Estou, sei que estou, dando voltas e voltas. Mas quero lhes dizer é justo isso...

Como é que você reconhece uma besta numa roda de samba? Como é que você sabe que ali, empunhando um cavaquinho, segurando um repique, batucando um tamborim, está uma besta? É fácil.

A roda de samba é, por excelência, congregação. É a missa campal do povo brasileiro, apud Aldir Blanc. O samba cantado por todos é, não há dúvida, o ápice, o axé, a força, o peso e a beleza da roda, do encontro, da reunião.

A besta o rejeita (o samba cantado por todos, que fique claro).

A besta quer começar o samba e ver que a seu redor há um silêncio absoluto, como o de uma missa à moda antiga. Ninguém sabe aquele samba. Ninguém conhece. Ninguém jamais ouviu falar (ou cantar). E daí ele levanta, no intervalo, com ar blasè, e sai sapateando distribuindo "não conhecia?", "nunca ouviu?", achando-se o maior, o superior, o supremo sábio.

É o anti-sambista. O anti-povo. E se arvoram, essas bestas, como procuradores não-nomeados de Candeia, Picolino, Colombo etc etc etc

Volto ao tema.

Até.

22.6.09

A INGRATIDÃO AMERICANA

Você vai começar a ler o que ora escrevo e, tenho certeza, o presidente Obama, a crise econômica, as relações dos EUA com o mundo virão à sua mente. Mas não é disso, absolutamente, que quero hoje lhes falar. É sobre a ingratidão americana, e me refiro, aqui, ao América Football Clube, o clube alvi-rubro da Tijuca, o clube pelo qual torce meu queridíssimo Felipe Quintans, mais conhecido na Tijuca e redondezas como Felipinho Cereal, o "pequeno grande homem" no entender do homem da barba amazônica.

Vejam bem o que escreveu o Felipinho Cereal em seu BOEMIA E NOSTALGIA (o Felipinho é, de fato, boêmio e nostálgico do alto da cabeça à sola dos pés, o que dá pouco mais de metro e meio):

"Acabou a promoção safada do Diário Lance. Junta-se 25 selos e paga-se R$39,90 por uma camisa de alguma destas equipes cariocas: Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco. Caso queira, por mais R$29,90 leva-se a do América, numa promoção que os pequeninos e infelizes jornalistas chamaram de "Minha Segunda Paixão". O que eu estou vendo de gente com a camisa do América nas ruas não está no gibi, o problema é que são torcedores de outros times. Uma lástima, um vergonha, humilhação, coisa que o América não merece e nem precisa. Torcedor bom é torcedor de uma equipe só. Não veste, jamais, o manto adversário. E o Diário Lance apenas me deu a certeza de que o velho Jornal dos Sports é infinitamente melhor."

Preocupou-me o estado do meu amigo quando li isso, em 09 de junho próximo passado (aqui).

Notem as botinadas impressas no texto: a excepcional promoção do jornal é "safada"; os jornalistas que bolaram a promoção com a camisa do América são "pequeninos e infelizes"; a simpatia dos torcedores cariocas pelo América é uma "lástima, uma vergonha, humilhação, coisa que o América não merece e nem precisa.". Ou seja, o bardo da Barão de Sertório pisoteia, sem dó nem piedade, na simpatia e no bem-querer do torcedor do clube adversário, maldiz a simpática promoção do LANCE!, distribui bofetadas no rosto dos jornalistas bem intencionados e ainda elogia o outrora glorioso Jornal dos Sports, que nem mesmo o espírito de Mário Filho lê mais.

Vejam, meus poucos mas fiéis leitores, que justifica-se minha preocupação com o estado d´alma de meu irmãozinho americano. Mas o pior deu-se ontem, e eu fiquei, sinceramente, pensando se o caso é ou não é de psicanálise.

Antes, porém, fixem na mente, como um neon imaginário, a frase de sua autoria: TORCEDOR BOM É TORCEDOR DE UMA EQUIPE SÓ.

Digressiono...

É uma grande frase, impactante. Sartre a assinaria (eu só escrevi Sartre porque li seu nome, hoje, numa confissão de Nelson Rodrigues). Torcer pelo Flamengo, por exemplo, no meu caso, não me impede de vestir, vez por outra, como quem veste uma camisa qualquer, a camisa do Anhanguera (usei-a ontem homenageando o Favela, que esteve aqui), a camisa do América (acho bonitinha), a camisa do Volta Redonda (tenho aguda simpatia pela cidade). Isso não me faz torcedor de outro time, certo?

Certo, sei que é certo.

Mas o que disse ontem, à mesa, cercado por mais de dez amigos (não vou nominá-los), o nosso Felipinho Cereal? Pior: o que fez nosso protagonista de hoje?

Papo vai, papo vem, cerveja vai, carne de sol vem (estávamos no BAR DO CHICO, como em todos os domingos), aproximava-se a hora do jogo Brasil e Itália pela Copa das Confederações. A conversa girava em torno da Copa do Mundo do ano que vem. E ele, o pequeno grande homem, abriu a mochila.

Abriu a mochila e de lá sacou um par de castanholas.

Ficou de pé.

Deu de sapatear a calçada da esquina tocando, com fúria espanhola, as ditas castanholas.

Segundos depois, puxou a toalha de uma mesa vazia e passou a tourear um touro imaginário (ele mesmo gritava "olé!" como um possesso).

Eram mais de vinte olhos esbugalhados diante daquela possessão européia.

Até que sentou-se, suadíssimo, enrolado na toalha e pousando as castanholas sobre a mesa.

Disse, transido:

- Soy contra!

Ninguém entendeu nada.

Luiz Antonio Simas, que entende das coisas do além, disse calmíssimo:

- Contra o quê?

Ele, de olhos fechados, mãos cerradas, socou a mesa plástica fazendo quicar copos, pratos e talheres:

- O Brasil! O Brasil!

Silêncio absoluto.

Pus a mão em sua testa (ele tinha febre) e disse:

- Contra o Brasil?

E ele, com os olhos brancos:

- Se o Brasil enfrentar a Espanha na Copa do Mundo, serei Espanha! Torcerei pela Espanha! Espanha! Espanha! España! España!

Saiu, como uma múmia de vodu, e tomou a direção de casa.

Ainda bati o telefone pra ele.

- No quiero hablar, Eduardo! Adios! Adios!

Eis, meus caros, o que eu queria - assustadíssimo e preocupado - lhes contar.

Até.

19.6.09

SAMBA E DIREITO

Encontrei-me com um colega dia desses, no centro da cidade, quando atravessava a Rio Branco em direção ao Tribunal de Justiça. No meio do caminho, não uma pedra, como diria Drummond, mas um comício do PSOL, o que significa dizer que três ou quatro aplaudiam freneticamente um histérico que berrava atrocidades através de um megafone pintado de vermelho e amarelo (havia um solzinho sorridente na corneta) num ritual que se repete a cada sexta-feira. Encontrei-me com ele, fomos efusivos no cumprimento e ele me pareceu eufórico como um pai recente:

- Edu! Edu! Finalmente encontrei a sala que eu queria! - e apontou, como um pirata avistando a ilha, para o edifício portentoso cravado na Rodrigo Silva rasgando o céu do Rio.

Dei-lhe os tapinhas protocolares no ombro e perguntei, tijucaníssimo:

- Vai ter coquetel de inauguração? - e fiz o abjeto gesto com a mão direita na altura do peito, a palma virada pra cima e os quatro dedos, tirante o polegar, empurrando a comida imaginária pra dentro da boca.

- Claro, claro! - e apresentou-me ao rapaz que o acompanhava.

Disse-me ele:

- Edu, esse aqui é um futuro colega nosso!

E deu nome ao boi, desinfluente para o que vou lhes contar.

- Futuro colega?! - perguntei ao rapaz estendendo-lhe a mão.

- Arrã. - respondeu-me formalmente abrindo um sorriso de isopor, ensaiado.

- Forma-se quando?

- Na PUC.

- Sei, mas quando?

- Quando? Depende, né? Mas na PUC, na PUC! - esfregava as mãos deslumbradíssimo.

A obsessão pontifícia do aluno-católico jorrava de seus olhos brilhantes de orgulho por trás das lentes dos óculos.

Meu amigo, tornando ao assunto da conquista imobiliária:

- Vou fazer uma roda de samba para inaugurar o escritório, sabe?!

Pôs a mão direita no canto esquerdo da boca com as unhas voltadas pro próprio rosto e disse forjando segredo:

- Sabe aquela minha cliente? Aquela, aquela... - e riu.

Contagiado pelo português castiço do estudante da PUC, pisquei e disse:

- Arrã!

- Então. Já a chamei, ela topou. Voz, um violão de sete cordas, um cavaco, uma percussão, acho que vai ficar bacana, você não acha?! No máximo 40 pessoas... o escritório não é tão grande...

Antes que eu respondesse concordando com a brilhante idéia, o aluno da PUC começou:

- Samba? - franziu a testa.

Nossos quatro olhos cravaram a fronte do universitário. Ele pôs a mão esquerda no queixo, ajeitou os óculos com a destra e disse:

- Não pega bem.

Continuamos mudos à espera do raciocínio do pontifício:

- Um escritório de advocacia pede o jazz! - fechou os olhos e tocou um sax imaginário.

Não agüentei:

- Jazz?! E por que não o samba?

- Ora, ora... - ele ainda tinha os olhos fechados - O jazz é mágico, é chique, é elegante, é sóbrio... Eu até gosto de um sambinha, sabe? Mas na Lapa, pô, na Lapa! Ou em Santa!

Despedi-me do amigo e do pontifício antes que eu começasse a ser desagradável.

Mas vejam bem vocês.

Há momentos em que eu digo, de mim para mim:

- Eduardo, largue esses conceitos, deixe de lado essas idéias pré-concebidas!

A vida real, pra fora da porta de casa, não deixa.

Até.

18.6.09

UM BEBÊ FUMANDO

Estava eu, dia desses, caminhando pelo centro da cidade, quando decidi parar para um café no CAFÉ GAÚCHO, na esquina da Rodrigo Silva com a São José. Comprei a ficha a R$ 1,00 (o café ali é de verdade e o preço é honesto, não é café expresso a preço de chope), encostei-me no balcão, pedi meu cafezinho puro, sem açucar, sem adoçante, acendi um cigarro e dei de olhar a paisagem. Estava acontecendo, no meio da praça, um comício do PSOL, o que significa dizer que três ou quatro pessoas cercavam o sujeito que discursava distribuindo botinadas em todas as direções e dizendo as coisas mais sem sentido que jamais ouvi (mentira, eu já havia ouvido coisa pior na semana anterior em discurso do mesmo PSOL). Diante de uma banca de jornal, uma pequena multidão se acotovelava para ler as manchetes dos jornais do dia. Na igreja da Rodrigo Silva, velhinhas encenavam um entra-e-sai comovente. Estava terminando meu café quando fui abordado por um sujeito que estendeu-me um panfleto:

- Você já conhece nosso candidato? - perguntou-me o cidadão vestindo calça jeans rasgada, uma camisa de juta com botões que me lembraram os Flinstones de onde pendia um bottom escrito "I LOVE SANTA", uma sandália de couro com sola de pneu e cabelos que fediam à distância e de onde saltavam lêndeas e piolhos socialistas.

- Não. - eu disse, e mantive o olhar no horizonte.

- Ele está convocando a população antenada a participar da Marcha Gay em São Paulo, cara...

- Cara? - e mantive o olhar no horizonte.

- Você não quer nem ficar com o panfleto dele?

- Não. - e mantive o olhar no horizonte.

Quando o piolhento afastou-se ouvi um burburinho na praça. Agradeci o café e tomei a direção da turba.

No banco da praça, um casal e um bebê no colo do pai, a mãe chorando muito e segurando uma máquina fotográfica antiga (acho que era uma Olympus Pen).

Populares cercavam a família e passei a prestar atenção ao discurso que uma histérica fazia, de dedo em riste:

- Chamem a polícia! Chamem o Conselho Tutelar! O Juiz de Menores! Isso é um absurdo, um verdadeiro absurdo! Essa criança crescerá traumatizada se continuar a ser incitada ao vício e ao mundanismo!

Cutuquei um senhor dentro de um bem-cortado:

- O que houve, heim?!

- Não sei, jovem, acabei de chegar.

O "jovem" me soou como deboche do cabeça-branca.

Atravessei a multidão, pus a mão no ombro da mãe e perguntei:

- O que houve? Vocês estão precisando de alguma coisa?

Soluçando, a jovem mãe disse ao marido:

- Conta pro moço, bem, conta...

O pai:

- Pedi a ela que tirasse uma foto minha com o menino, e de brincadeira pus um cigarro aceso entre os dedos dele, sabe? Queria repetir uma foto que meu pai fez comigo quando eu tinha dois anos, a idade dele... Ele fez anos ontem...

A histérica continuava (reparei que ela também usava um bottom do PSOL):

- Absurdo! Onde é que já se viu isso!? Uma criança fumando!

O pai ameaçou partir pra cima da loura. Pus as mãos em seus ombros e disse:

- Deixa quieta. É desequilibrada.

Ela seguia:

- Eu sou psicóloga, gente! Eu sei o que eu tô falando! - e deu de distribuir seu cartão.

Olhei pro pai, olhei pra mãe, e disse:

- Vamos, vamos tomar um café ali na esquina...

Em coisa de - o quê?! - cinco minutos a pequena multidão se dispersava, fui abrindo caminho para passar com a pequena família, até que a socialista dirigiu-se a mim:

- Você aí! Quem é? Quem é você?

Eu estaquei diante da patética figura e disse:

- Eu sou normal, minha senhora. A senhora é psicóloga! Psicóloga! Saia! Saia! Saia da frente!

Fui aplaudido. Caminhei com os três até o balcão do café e a histérica foi lá juntar-se a seus companheiros de partido em estado de absoluto choque com minha reação diante da abordagem pífia na frente de todos. É bem verdade que uma ou outra besta ainda ficou muxoxando indignação na praça como se tivessem algo a ver com a vida da criança, com a vida de seus pais, com a condução que estes dão ou darão à educação do pirralho que nada entendia, por óbvio.

E lembrei-me de um episódio recente.

Estava eu na casa de uma tia vendo, na parede do corredor, as fotos de seus filhos, todos bebês, em preto-e-branco, as famosíssimas fotos das sete carinhas, uma novidade popularíssima nas décadas de 40 e 50. Dei de cara com a foto do Beto com - o quê?! - dois, três anos no máximo. Numa das sete fotos, o malandro (hoje com mais de 40 anos) segurando um senhor cigarro aceso.

Beto JAMAIS (com a ênfase szegeriana) fumou. JAMAIS experimentou o gosto de um cigarro, quer seja de maconha quer seja do convencional. Hoje sua pobre mãe seria presa, agredida, processada por conta do inocente gesto que sempre soou como inocente piada, e no entanto os pulmões do Beto não têm sequer resquício de alcatrão ou nicotina.

E tive eu que ouvir a bacana sapateando com seu salto alto bradando as regras estúpidas que tentava impôr aos passantes e àquela família normal diante de mim.

Com vocês, Nelson Rodrigues:

"Meninos de sete anos, meninas de cinco, vêem novelas. Portanto, era uma medida típica de salvação nacional e humana varrer essa miserável subliteratura. Um espírito crassa e estreitamente positivo poderia perguntar: "E os menores abandonados? E os garotinhos que bebem a água das sarjetas, e os que apodrecem de abandono?". Esses não precisam de nós. (...) Na rua, fica tudo como está. Mas nos lares a criança está protegida, dos pais, das mães, das avós, das tias, das cunhadas e primas. (...) Já houve a morte da novela. Veremos, em seguida, outras mortes: da pobre música popular, do futebol, da piada, do sorriso."

Isso, meus caros, foi escrito em 1969.

E muito por conta de posturas recorrentes como a da bacana socialista do Buraco do Lume, a profecia rodrigueana faz-se dura verdade a cada dia que passa.

Até.

17.6.09

BAR DO PAULÃO

Quando eu terminei de escrever a dedicatória no livro que dei ao caboclo - "Pro Paulão, dono do melhor buteco do mundo, com um abraço do tamanho da minha saudade" - foi que eu me toquei: eu estava, depois de mais de dez anos, sentado de novo no buteco que é, de fato, na minha humílima opinião, o melhor buteco do mundo (eu dizia isso ao Paulão desde 1992, quando ele inaugurou o portentoso estabelecimento, do qual fui (sou, por óbvio, e é ele mesmo que diz) um dos primeiros clientes).

O BAR DO PAULÃO fica em Caxambu, sul de Minas Gerais, cidade na qual nunca mais pisei por razões que, franca e sinceramente, não vêm ao caso. Fui passar o final de semana prolongado em São Lourenço, a 20km de lá, a fim de estar com parentes da mulher que me ensinou a sorrir. Arrumando as malas, na sexta-feira pela manhã, falei pro meu vira-lata:

- Vou levar dois livros meus, um pro Venceslau e outro pro Paulão. Quem sabe consigo encontrá-los?

Na manhã de sábado bati o fio pro Venceslau, o sujeito que me ensinou a dirigir, e que fez tremenda festa quando me ouviu:

- Quero encontrá-lo, Venceslau. O Bar do Paulão ainda está lá?

- Ô... - disse ele, mineiramente.

Marcamos às cinco da tarde na porta.

Ansioso, cheguei às quatro e meia.

Bar fechado.

Bati a campainha (o Paulão mora no bar; o lar dele é, de fato, o botequim).

Paulão veio à porta e eu nem lhes conto!

- Ô, Dudu! - olhos marejados, ele enorme, aqueles braços imensos e um abraço acumulado há mais de década.

- Fechado, Paulão?!

- Abro às seis e meia... Abria! Abria! Vou abrir agora!

Papo vai, papo vem, ele abriu o bar, deparei-me com o mesmíssimo cenário de antes, centenas de garrafas de cachaça nas prateleiras nas paredes (algumas com mais de 100 anos), o mesmo rádio valvulado no balcão, a mesma geladeira que não mais existe, a flâmula do Cruzeiro, a Brahma estupidamente gelada, a costelinha de porco preparada pelas mãos sagradas da dona Fátima, e o Venceslau chegou, pintou na área de surpresa o Sérgio, apontador de bicho que fez meus jogos durante muitos anos, e o velho deu de chorar de saudade matada naquela ladeira, perguntaram pelo meu pai, liguei pro celular do meu velho, que falou com todos, depois me foram servidas doses e mais doses de cachaça, provei (de novo) das batidas de maracujá com tangerina preparadas pelas mágicas mãos do Paulão, comi croquetes de carne, bolinhos de aipim, fiquei ali - o quê?! - coisa de duas horas e voltei pra São Lourenço (e domingo pro Rio) com essa certeza amalgamada dentro do coração: o BAR DO PAULÃO é mesmo o melhor buteco do mundo.

Fica na rua João Pinheiro, em Caxambu, no alto da ladeira, no número 567, e você pode falar com o cracaço no (35) 3341-1763, ele que abre o bar de quinta a sábado (e feriados!), a partir das 18h30min.

Do alto de meus 40 anos deixo aqui minha agudíssima recomendação: vale a visita, e vale muito.

Vivi ali, naqueles 120 minutos, emoções que só mesmo o buteco proporciona na vida da gente.

Até.

16.6.09

O SONO DA TERAPEUTA

Dia desses eu saí pra beber uma cerveja com ela. Dei o telefonema na parte da tarde e disse fingindo ar blasè:

- Uma Brahma no final do dia?!

Ela, sempre disposta ao exercício sócio-etílico, topou na hora, moderníssima:

- O.K.!

Marcamos às sete da noite num bar na Praça da Bandeira. Cheguei primeiro. Estava ansiosíssimo para prosseguir minhas prospecções sobre a nefasta figura do terapeuta, do analista, do médico das almas, e quero fazer um adendo já que tenho recebido críticas de gente que, franca e sinceramente, esqueceu o humor em casa ou nunca me leu: não me interessa o bom profissional, o psicólogo competente, o psicanalista decente, o terapeuta incorrigível (não os conheço, mas devem existir, quero crer). Os holofotes aqui são voltados para os pobres-diabos que fumam, alucinados, os bacanas que os atendem, para os profissionais que vivem à custa dessa dependência que costuram, sessão após sessão, como velhas rendeiras orgulhosas de suas obras. Dito isso, em frente.

Quando ela chegou foi efusiva.

Eu, mais:

- Que beleza! Que beleza! Sente aí, sente aí! - e apontei a cadeira vazia à minha frente.

Ela sentou-se, elogiou meu Zippo, acendeu um cigarro e disse cravando os olhos nos meus:

- Quêcssemanda?

Eu, modestíssimo:

- Eu não mando, querida. Eu obedeço!

Ela riu, gargalhou até, achou graça da piada infâme e obtusa e pedimos uma cerveja belga, fortíssima (o nome é desinfluente, na verdade nem me lembro). Uma, duas, três, quatro garrafas, e ela já mal equilibrava o cigarro entre os dedos (já inchados), falava pastoso, e eu espetei:

- E a análise? Como vai a análise?

Era meu objetivo desde o início.

Disse a ela, sôfrego, como um homem com sede no Saara, que eu queria ouvir histórias absurdas vividas por ela dentro dos consultórios (ela coleciona consultórios). Essa minha amiga faz análise desde os cinco anos, e é um poço artesiano de boas histórias envolvendo os profissionais da alma. Ela, excitada com minha prospecção, disse:

- Mas você não vai publicar, né?

- Vou! Vou! É claro que vou!

Agarrei seu braço com as duas mãos, apertei de leve e disse:

- Foi pra isso que te chamei.

Ela meneou a cabeça, ajeitou os cabelos (ela se parece, a cada dia que passa, mais e mais com a Elis Regina), acendeu outro cigarro, virou num só gole a cerveja e disse:

- Fiz, durante oito anos, terapia com uma cara que dormia, solenemente, durante todas as sessões.

Eu gani:

- Conta, conta, conta!

Ela tinha dez anos (coitadinha). Por imposição dos pais que viam a filha sofrendo com complexos agudos de inferioridade, passou a freqüentar o consultório de uma tal doutora na Praça Saens Pena. Primeira consulta (ela chorava copiosamente enquanto me contava o caso): minha amiga chega ao consultório (a mãe a deixara na portaria do prédio) e é recebida pela doutora Boa Nata. Senta-se no pufe (não havia divã), confortabilíssimo. A nome-de-queijo diz, tomando do bloquinho e da caneta:

- Então, amoreco. O que te traz aqui? Conte-me com calma, muita calma, você tem quarenta e cinco minutos pra me dizer o que te traz aqui...

Minha amiga, depois de vinte minutos olhando pro teto, começou:

- É que eu acho que... - ouviu um ronco.

Ergueu-se do pufe no qual estava soterrada e viu a cabeça pendendo do pescoço da terapeuta. Com medo - não sabia, ela me contou, se essa cena fazia parte do jogo - não disse nada. Ficou em aterrador silêncio até que soou o alarme do despertador. Ouviu a voz da bacana:

- Muito bem, amoreco, muito bem... Seu caso é mesmo de análise!

Minha amiga, constrangidíssima.

- Sua mãe mandou alguma coisa por você?

A pobrezinha estendeu um envelope que guardava no bolso da calça jeans.

Boa Nata o abriu, contou as notas e disse:

- Até depois de amanhã, viu?

O roteiro seguiu por oito longos anos.

Minha amiga - já visivelmente embriagada - contou que os pais não acreditavam na história da bacana dormindo. Diziam absurdos como:

- Imagine se a doutora vai dormir durante as sessões!

- Filha, ela está apenas concentrada, concentrada! Essa gente tem métodos que não compreendemos!

Notem vocês que a bacaníssima enricou durante oito anos à custa da pobrezinha. Dormia, sonhava, roncava, babava lacanianamente, fazia poças de saliva no próprio colo e recebia, efusiva e grave, o envelopinho ao final de cada sessão.

Um dia - tentem imaginar a cena - a coitadinha pede à mãe:

- Mamãe, vá e fique na recepção. Dou um jeito de abrir a porta à certa altura.

A mãe topou, resignada.

Até que aos quarenta minutos de sessão, doutora Boa Nata roncando altíssimo como um javali, a filhinha vai, pé ante pé, e abre a porta da recepção. Chama a mãe com o dedo indicador.

E a mãe, profundamente decepcionada, a vê babando na poltrona por trás do pufe.

A mãe toma a filha pelas mãos e bate, com fúria, a porta do consultório.

No caminho pra casa, diz pra filha:

- Desculpa a mamãe?

A filha funga.

- Desculpa?

Ela diz, trêmula:

- Nem a terapeuta me agüenta mamãe... Eu sou chata, muito chata, muito chata! Ela tem mais é que dormir mesmo! Dormir! Dormir! Fugir de mim!

E enquanto o táxi deslizava pela Conde de Bonfim, a pobrezinha defendia, com unhas e dentes, o sono e os sonhos da bacana, à custa do dinheiro de seus pais.

Ao chegarem em casa, um telefonema da polícia.

Boa Nata estava morta, precisavam ouvir a menina.

Durante o jantar, o pai deu a sentença:

- Viu, filha? A doutora morreu. Morreu ouvindo você. Nunca dormiu, nunca dormiu!

E dirigindo-se à esposa, servindo-se do ensopadinho, disse olhando nos olhos da filha:

- Querida... amanhã mesmo precisamos providenciar outro profissional da alma pra nossa pequena...

Até.

15.6.09

A REDE

Há o caso de um cara que é impressionante. Estudante da PUC (bolsista), freqüentava mais o Pilotis do que o Cardeal Leme, se é que me entendem. Assistia, embevecido, o desfile diário das bolsas Louis Vuitton rodando nos braços das estudantes-estagiárias, os ternos bem cortados dos estudantes de primeiro período ainda sem perspectiva de trabalho (tudo é pose na PUC), as chaves dos carros importados exibidas sem pudor, e tinha olhos de ver e ouvidos de ouvir dispostos a uma catapultada social (morava em Brás de Pina, a mãe era empregada doméstica e o pai motorista particular de um padre da Pontifícia Universidade Católica).

As conversas ao pés das pilastras do Pilotis giravam em torno da night (fala-se inglês em profusão no campus da Gávea), da qualidade da maconha consumida na véspera, sobre as vantagens incomensuráveis da terapia. Lacan, Freud, Fritz Perls, os nomes escorriam até a Marquês de São Vicente e inundavam as mesas do BAR DO PIRES, uma espécie de bunker pós-aula do alunado. O cara sempre atrás das lufadas intelectuais do ambiente.

Pôs na cabeça: tenho que fazer terapia! Não posso ficar atrás!

Vai daí que começou a recolher os cartões dos profissionais da alma espalhados pelo campus.

Ele tinha uma limitação bastante evidente que era o orçamento. Estagiava, recebia um salário mínimo por mês, uma mesada modesta do esforçadíssimo pai e uma poupança razoável na CEF, fruto de uma pequena herança que lhe fora deixada pela avó materna.

Mas sonhava com o divã. Sonhava em poder aproximar-se, um dia, daquelas rodinhas no Pilotis e dizer:

- Puxa vida, que terapeuta o meu! Que terapeuta!

Foi a um, a dois, a três, foi a - o quê?! - uns dez consultórios para a primeira conversa. Negociou preço com todos e foi muito com a cara do dr. Fúlvio que mantinha confortável consultório no Humaitá e mostrara-se disposto (o único) a trabalhar dentro das possibilidades do menino.

Um senão agoniava o pobre-diabo: o consultório do dr. Fúlvio não tinha um único e mísero divã, mas uma rede.

E lá foi o analisado para a primeira sessão.

- Deito-me na rede, doutor?

- Deite-se. Sente-se. Como você se sentir melhor.

Deitou-se.

Uma, duas, três, quatro sessões, e só na quinta sessão o paciente pediu:

- Doutor?

Silêncio seguido de um olhar greco-romano.

- Me balança, por favor.

E bacana, com o pé, empurrou a rede. E embalou o paciente.

Pra quê?

A rede balançava, o paciente chorava agudamente, agudamente, até que explodiu em posição fetal:

- Isso me lembra o embalo de vovó!

Deu-se, naquele momento, o big-bang emocional que prendeu, parece que para sempre, o paciente ao seu bacana-portátil.

Dali pra frente o doutor passou a fazer o que parecia impossível, passou a ganhar os tubos, rios de dinheiro!, apenas para balançar a rede do pobre-diabo, que chorava, gania, uivava, tremia embalado pelos sapatos de cromo alemão do terapeuta.

Amanhã lhes conto sobre a terapeuta que, na mesma linha do colega a que me referi hoje, ganhava uma baba para dormir - sim, dormir! - solenemente durante as lamúrias de sua paciente.

Até.

12.6.09

O ANALISADO ÀS VÉSPERAS DA ALTA

Eu lhes contei, dia desses, sobre um amigo meu, já morto, quando escrevi O ANALISADO, leiam aqui. Paciente do dr. Santarém, meu amigo sofreu os diabos nas mãos do bacana. Não foram poucas vezes em que, chegando ao bar, meu amigo respirando como um fole, ofegante, pedia um chope que sorvia num átimo para dizer depois, lambendo os beiços:

- Não é fácil esse doutor Santarém!

A mesa, composta por sacanas da mais alta estirpe, forjava a dúvida acachapante e perguntava em uníssono:

- O que foi dessa vez!?

E ele respondia sempre a mesma coisa:

- Não admitiu que eu tivesse alta em hipótese alguma.

Eu não sei se vocês conhecem algum diabético, e já explico o por quê da menção ao diabético. O diabético precisa ter, vocês sabem, permanentemente por perto, a bolsinha com gelo e as ampolas de insulina para a espetada vital. Pois se é verdade que o analisado e a analisada precisam agudamente do contato constante com o bacana do analista é também verdade que o analista precisa, por razões econômicas e de poder, do paciente dependente. Ambos são, um para o outro, a insulina do diabético. Vejam se não.

Meu saudoso amigo dizia no final da sessão, assinando o cheque:

- Então, doutor Santarém, acho que estou vindo hoje pela última vez...

E o bacana, mudo há sessenta minutos, saltava da poltrona de couro, estacava como um poste diante do paciente e dizia, gravíssimo:

- Nem pensar, meu caro, nem brinca com isso!

- Mas...

- Não tem mas, meu caro. Olha o suicídio! Olha a recaída! Olha a estabilidade emocional!

E ameaçava tanto meu pobre e frágil amigo que de lá ele saía com mais uma boa dúzia de sessões marcadas (marcadas também pelo mais desértico silêncio do analista).

Há, também, o caso de um leitor que me escreve pedindo anonimato. Trocamos - o quê?! - meia-dúzia de e-mails até que eu me inteirasse de seu caso (que me pareceu tão grave quanto comum).

Seu psicanalista tem consultório na Praia de Botafogo, o que, segundo o leitor, torna as sessões agradáveis do ponto de visto estético-visual. No que diz respeito ao tratamento, a mesma mudez tantas vezes apontada. Contou-me ele que há coisa de cinco anos (eu disse cinco anos!!!!!), sentindo-se bem e bastante mais seguro, chegou ao consultório do psicanalista na hora marcada. Como um rajá, postado e econômico nos gestos, o bacana apontou o divã com vista para o Pão de Açucar. Deu-se o monólogo:

- Não, doutor Vasconcelos, hoje não. Hoje não e nunca mais. Dei-me alta!

O bacana não moveu um músculo, não piscou um olho. Continuou apontando para a confortável poltrona (a bem da verdade não era um divã). Sentou-se, tomou do bloquinho de notas, empunhou a Mont Blanc, pôs a mão no queixo, fechou os olhos e esperou, pacientemente, o desfilar das histórias do paciente (meu leitor, não percam o fio).

Passados sessenta minutos o psicanalista apertou o interruptor perto de sua cadeira e chamou a secretária. Cochichou algo em seu ouvido.

O paciente ensaiou despedir-se do médico da alma mas este manteve-se de pé, como um rajá, apontando a portinha que dava para a recpeção.

Lá, disse a secretária:

- Ele me disse que seu caso é gravíssimo. Que o senhor piora a olhos vistos... Mais doze sessões, doze sessões, no mínimo!

- Mas...

A porta abriu-se como em mágica. O poseur fuzilou o paciente com os olhos. Da crista dos cabelos ao cadarço dos sapatos. E bateu a porta, com fúria.

Isso ocorre a cada doze sessões há cinco anos.

Disse-me mais, o pobre-diabo, que não sabe como é a voz do seu bacana-portátil. Um troço, convenhamos, impressionante.

Mas nada mais impressionante, também, que a soberba do analisado que nem pensa em alta. Pior, que tem pânico diante da iminência da alta.

Conheço o caso de um camarada que, depois de vinte anos consecutivos de sessões com o psicanalista (três por semana, o caso era batata quente), teve alta.

Caiu em depressão profunda. Chorou de ganir no consultório do bacana. Prometeu pagar o dobro por seus monólogos. E o bacana nada:

- Você está de alta, meu rapaz! Altíssima!

Ameaçou se lançar do décimo-quinto andar do prédio em Ipanema. Prometeu pagar o triplo.

- O triplo?

- O triplo, preciso do senhor como o diabético precisa da injeçãozinha de insulina!

- Seguimos, então, seguimos!

Era a primeira vez que ouvia a voz do doutor em vinte anos. E a última, desde que seguiram (até hoje) com o tratamento.

Até.

11.6.09

O ANALISADO, AINDA

Dedico-me hoje, pelo terceiro dia seguido, a tecer minhas digressões sobre essa figura frágil (ela não sabe que é frágil como porcelana) que é a do analisado, da analisada. Na terça-feira escrevi O ANALISADO (aqui), ontem AINDA O ANALISADO (aqui), e hoje deito-me sobre o assunto uma vez mais, mais voltado para os efeitos práticos, no dia-a-dia, dessa nefanda atividade.

Eu conheci um sujeito, o Nestor, em meados da década de 80. Tínhamos - o quê?! - uns 15 anos. O Nestor perdera o pai exatamente um dia depois do parto que o trouxe ao mundo. Fulminado por um ataque do coração, seu pai, torcedor fanático do Fluminense, não resistiu às emoções do Fla x Flu de 15 de junho de 1969, quando mais de 170 mil torcedores assistiram à vitória do Fluminense por 3 a 2 no Maracanã. Morreu maldizendo sua mãe que o obrigara a ficar na maternidade, ouvindo - vá lá! - o jogo pelo radinho para fazer sala para a parentalha na maternidade.

Nestor cresceu ouvindo essa história contada por sua mãe, por seus avós, primos e primas mais velhas, e cresceu rubro-negro, amando o Flamengo graças à garotada da vila onde morava (ainda mora, encontrei o Nestor não tem nem um mês). Era (não é mais) fanático. Não perdia um jogo do Flamengo, era do tipo que viajava, entrava em caravana em ônibus clandestino, fazia parte de torcida organizada, o escambau. Um dia, Nestor estava para fazer 18 anos, e sua mãe o chamou, grave:

- Nestor, preciso falar contigo. Coisa séria.

Mergulhando o pão francês sem miolo na caneca de café com leite, Nestor respondeu:

- Fala, mãe.

- É sério, filho. Senta aí.

Nestor sentou-se. Achava a mãe uma santa, afinal o criara praticamente sozinha, viúva, costurando pra fora, dando tudo de si para garantir a educação do único filho.

- Nestor, esse teu fanatismo pelo Flamengo, filho... Há 18 anos penso no desgosto de teu pai... Tu não percebes que... que... - a mãe gaguejava.

- Percebo o quê, mamãe?

- Tu não percebes que teu fanatismo nada mais é do que uma vingança tua contra teu pobre pai só porque ele morreu um dia depois do teu nascimento?! Não percebe?! - chorava, a mãe, dona Jandira.

- Ô, mamãe... que papo é esse, mãezinha?!

A mãe assoou o nariz num guardanapo de papel. Bateram à porta, Nestor foi atender.

Voltou à cozinha:

- Mãe, é pra senhora. É Margarida, não conheço...

A mãe fez cara de aterrada, ajeitou o avental, o pano de prato sobre o ombro e foi atender a cara. Demorou - o quê?! - uns 10, 15 minutos. Voltou-se. O filho lia o LANCE!.

- Quem é, mamãe?!

- Inquilina nova da casa oito. Psicóloga. Foi ela que... - e deu-se o blá-blá biográfico da nova vizinha.

Quando Nestor fez 18 anos ganhou de presente, da vizinha, fruto de um arranjo com a mãe, que cuidava das roupas da bacana, um ano de sessões de análise grátis, duas vezes por semana. O consultório da doutora era em Copacabana e lá foi o pobre Nestor descobrir, em absoluto pânico (era, na íntegra, um órfão de pai, visivelmente carente), que o futebol nada mais era do que uma fuga da dura realidade da orfandade, que seu fanatismo, justo pelo Flamengo, era uma espécie de vingança contra o desaparecimento precoce do pai, que sua relação com o ídolo Zico nada mais era do que transferência, essas besteiras olímpicas que os bacanas exalam pela boca como fumaça de um Cohiba legítimo.

O fato é que o Nestor deixou-se levar pelo papo da bacana. Passou a criar dois gatos que encontrou na rua dando-lhes o nome de Eros e Tanatos. Abandonou o futebol, o Flamengo, passou a olhar para seus amigos de infância com um olhar greco-romano, nunca mais pisou no Maracanã e, quando eu o encontrei, há coisa de um mês, estando eu debruçado no balcão do CAFÉ GAÚCHO à espera do Leo Boechat, o chamei efusivamente:

- Ô, Nestor! Há quanto tempo, negão! E nosso Mengão, hã?! Bebe um chope comigo?

Ele me olhou dos pés à cabeça com um cara de nojo que vou lhes contar:

- Chope?! Mengão?! Eu evoluí, Eduardo! Evoluí!

E estendeu-me, depois de prospectar o bolso do agasalho onde vi espetado um botom do PSOL (fazia um frio polar no Rio), um cartão chiquérrimo:

- Procure a doutora Margarida. Fale em meu nome. Passar bem!

E saiu sapateando as pedras portuguesas da São José.

Até.

10.6.09

AINDA O ANALISADO

Hoje vou prosseguir nas sendas dessa figura sorumbática que é o analisado, a analisada, conforme lhes prometi ontem, quando escrevi O ANALISADO, leiam (ou releiam) aqui. O texto fez, quero reconhecer publicamente, relativo sucesso. Recebeu poucos comentários, é verdade, mas rendeu uma enxurrada de e-mails. Um deles, anuncio desde já, me servirá de inspiração para o que quero lhes dizer hoje (e sobre o mesmo tema, palpitante, falarei também amanhã). Vamos ao e-mail que mais me impressionou, de um fiel leitor que me pediu (e eu o atenderei, por óbvio) anonimato:

"Freqüentei psicóloga quando criança. Eu era uma peste, saía no tapa praticamente todos os dias no colégio, além de detestar estudar: um típico menino revoltado sem causa. Meus pais, então, enfiaram-me numa psicóloga. Não adiantou, eu ficava jogando ping-pong com ela numa mesa minúscula, pouco falava; ela – como sempre -, muda. Por vezes, enchia-me daquele tédio (o ping pong era uma bosta), pedia para ir ao banheiro, e demorava uns 10/15 minutos – não, eu ainda não tinha idade para o 5x1, e ela jamais poderia ser fonte de inspiração para tal passatempo – só para sair da frente dela, uma das maiores malas da minha vida. Foi um dinheirão jogado fora durante um ano inteiro, e tenho cá desconfiança, que mais por conta da incompetência da tal fulana, do que por minha, digamos, incompreensão juvenil. Uma pena, pois acho que se meu pai tivesse investido tal monta num autorama novo, eu teria sido muito mais feliz."

Pausa para meus comentários.

Imaginem a cena, e tirem as crianças da frente do monitor. O leitor em questão era - a leitura de suas primeiras frases não deixa dúvidas - uma criança rigorosamente normal. Seus pais, que não deviam ter tempo para o próprio filho e achavam elegantérrimo ter um psicólogo cuidando do pimpolho, puseram o moleque numa bacana. E o que fazia a bacana? Na ausência do divã, que seria inadmissível para uma criança, e tendo descoberto (tenho certeza, tenho certeza!!!!!) o nicho criança-bem-nascida-mimada-com-pais-sem-tempo, via o cofrinho encher de dinheiro enquanto, empunhando uma raquete de ping-pong, distraía (ou pensava distrair) a criança com partidas chatas e intermináveis de tênis de mesa. O menino, hoje um profissional bem sucedido graças a seu talento e perserverança, teria sido (a confissão e a conclusão são dele) infinitamente mais feliz com um mero autorama, sonho de todo moleque na década de - o quê? - 70, início dos anos 80. Mas, imaginem vocês se os pais dariam um brinquedo para a criança se podiam dar - ah, os luxos dos pais zona-sul - um psicólogo! Vamos à continuação do emocionado relato de meu leitor:

"Ultrapassada a psicóloga, infância, adolescência e faculdade, eu resolvi – depois de muito refutar – testar, por um tempo, a psicanálise. Não por conta de coisas mal resolvidas e etc., mas porque tinha essa – equivocada – impressão (vinda, talvez, de amizades feitas nos corredores do Cardeal Leme, se é que me entendes) de que o analisado é mais evoluído, enxerga mais, sente mais, percebe, e, acima de tudo, conhece mais de si. Sem dúvida, essa é a grande propaganda da psicanálise e, especialmente, do psicanalista, seja ele medíocre, seja ele um estudioso."

Eu não sei se vocês, meus poucos mas fiéis leitores, captaram a mensagem imbuída na menção aos "corredores do Cardeal Leme", e eu explico. Meu leitor estudou - onde mais?! - na PUC, onde deixar cair no Pilotis o cartão do psicanalista é sinal de status. O mesmo se dá, por exemplo, em Santa Teresa, onde fazer análise é condição sinae qua non para ser considerado um descolado. O mesmo se dá com o filiado ao PSOL, que é vaiado em convenção se não tiver, no bolso do colete (membros do PSOL se sentem in vestindo coletes), o cartão do seu próprio bacana. E notem como meu leitor vai na mesma direção que fui ontem quando eu disse que há, no analisado, essa necessidade incompreensível do proselitismo!

Continuando:

"Bom, foram 4 anos de psicanálise, o que para mim foi uma experiência bacana, positiva. Nunca cheguei a me sentir – e nem me sinto – superior ou melhor do que ninguém por isso. Senti, sim, por vezes, certa dependência da psicanalista (alimentada, naturalmente, por este), e isso muito me incomodou, mas depois deixei essa neurose de lado e a coisa fluiu bem."

O analisado, que fuma, cheira, debulha e aperta seu bacana-portátil, depende do doutor para quase-tudo. Quer ir ao cinema. Doutor, drama ou comédia? Quer sair pra jantar. Mestre, carne ou peixe? Quer viajar. Sábio, Europa ou América? E por aí vai.

E assim meu leitor fecha o e-mail (omiti os pontos mais pugentes e capazes de identificá-lo):

"Achei muita coincidência esse teu post, pois tem, exatamente, um mês, que me dei alta, após pouco mais de 4 anos de sessões. Não sinto falta, mas também não me arrependo de ter feito. Acho minha ex-psicanalista uma pessoa bacana, profissional, correta, e com defeitos; muitos, inclusive, ligados ao ranço da profissão (todas as profissões têm os seus), que você muito bem descreveu. De resto, estou contigo, quando dizes que muitos fumam o psicanalista (perfeita a expressão), utilizando-o como um verdadeiro guru, conselheiro, chegando à idolatria. Além de patético, é altamente maligna essa distorção de valores."

Quatro anos de sessões (vamos na média de 2 sessões por semana) somam 384 sessões. Vamos à média de R$ 200,00 por consulta e verificamos, assombrados, que meu leitor entregou na mão da psicanalista a quantia de R$ 76.800,00. Um carro de luxo zero quilômetro! Um apartamento modesto em Jacarepaguá! Uma quitinete na Tijuca! E isso, meus poucos mas fiéis leitores, para que a bacana se mantivesse no mais rigoroso e árido silêncio (os psicanalistas mudos são muito mais chiques!). O único gesto do psicanalista é, sempre, o apontar do relógio ao final do tempo estabelecido com o dedinho indicador, como um metrônomo de carne batendo no vidro do Mido.

Dito isso, vamos a um caso concreto, prova cabal do efeito nefasto que causam, os bacanas, na vida de seus pacientes.

Estava eu no CAFÉ GAÚCHO, um dia desses, encostado no balcão de café, saindo do metrô em direção ao Tribunal de Justiça. Sozinho.

A meu lado, um sujeito de terno, como eu, conversava com outro, também num bem-cortado.

- Tens visto o Danúbio?

- Nem te conto... - pôs as mãos em concha sobre a boca.

- O que foi?

- Está fazendo análise.

- Análise?!

- Análise. Mudadíssimo, nem queira encontrá-lo!

O amigo boquiaberto, mexendo o café com a colherinha, olhando pro Buraco do Lume, onde acontecia um comício do PSOL para quatro pessoas.

Eles se cutucam.

- O Danúbio! O Danúbio vem lá!

- Onde, homem de Deus? Onde?

- Ali, ó! De terno bege e gravata vinho!

E passou o Danúbio pela esquina da Rodrigo Silva com a São José.

Foi chamado com um "psiu". Parou. Olhou pros dois. E não esboçou reação.

Disse o primeiro, que acabara de saber da novidade psicanalítica, com os braços abertos:

- Ô, Danúbio! Dá cá um abraço nesse teu irmão, pô!

E eu testemunhei, juro pra vocês, a frase gélida do analisado:

- Abraço? Tu estás brincando, Macedo?

O pobre do Macedo ficou sem ação, com os braços abertos como a águia da Portela:

- Tá me estranhando, Danúbio?!

- Tu nunca foste meu amigo, Macedo. Que dirá irmão! Passar bem!

Antes de partir vasculhou o bolso interno de seu paletó. De lá de dentro, sacou um cartão:

- Vá procurar um analista, Macedo. Eu mudei, e para melhor. Passar bem!

Saiu sapateando os paralelepípedos da Rodrigo Silva numa pose de puro-sangue, virando a cabeça até dobrar a Assembléia, com aqueles olhos de profunda piedade que os analisados trazem encaixados na máscara que vestem depois das primeiras sessões.

Até.

9.6.09

O ANALISADO

Estava eu, ontem, escrevendo DO DOSADOR (aqui), quando dei de falar sobre o analisado, a analisada. Nada tenho contra o expediente, que fique claro: há, quero crer, quem precise do psicanalista. Uma crise, um momento difícil, uma situação sei-lá-qual, e justifica-se a contratação do médico, o pagamento por uma hora, hora e meia, de conversa com o doutor. Pouca gente à minha volta (ao menos que eu saiba) tem, no bolso, seu psicanalista, seu psicólogo. Mas quero crer que sejam poucas, mesmo, as pessoas que recorrem à terapia. Pois uma das características do paciente é o orgulho de sua condição, de sua situação. Você está no bar, pede um chope, olha pro camarada ao lado, o cumprimenta com um leve meneio da cabeça e ele diz afrouxando a gravata e olhando pro relógio:

- Tenho que ir. Tenho análise!

Como eu disse, há os casos que justificam a busca do expediente. Mas há, também, e trata-se da maioria, os que fumam o psicanalista, o psicólogo. Os dependentes quase-químicos. Os que não conseguem dar um passo, um mísero passo, sem consultar o profissional que trazem a tiracolo. Eu tinha um amigo (que morreu) que ia três vezes por semana ao consultório do bacana, em Ipanema. Setenta e cinco por cento do salário do de cujus ia para o psicanalista. E ele nutria, pelo bacaníssimo, uma devoção, uma voluptuosa dependência que - confesso - me divertia. Encontrávamo-nos, segundas, quartas e sextas, numa mesa na varanda do BAR LAGOA, por volta das nove da noite. Ele sempre chegando do consultório do doutor Santarém. Eu:

- E aí? E aí?

- O de sempre.... - ele também respondia sempre a mesma coisa.

"O de sempre" - leiam sentados, meus poucos mas fiéis leitores, e tirem as crianças da frente do monitor - significava que meu saudoso amigo sentara-se diante do psicanalista e ficara ali, mudo, estático, no máximo roendo as unhas, por sessenta cravados minutos, após o que o bacana dissera:

- Até a próxima, meu caro.

Nas primeiras sessões o hoje-morto ainda ousara um sinal de insatisfação e surpresa, mas o doutor Santarém, implacável, batia com o indicador da mão direita três vezes no vidro de seu Mido e, mudo, apontava para a porta da recepção. Com o tempo meu saudoso amigo foi sendo tomado por um sentimento de idolatria com relação ao seu bacana. Dizia para nós, à mesa do BAR LAGOA:

- É um dos maiores do Brasil, seguramente o melhor do Rio de Janeiro!

Sacaneado pela turma, dizia com ar superior:

- Vocês não entendem nada! O silêncio dele diz mais que a fala pueril de todos vocês!

Uma besta, que Deus o tenha.

Dia desses, almoçando no Centro, ouvi duas mocinhas conversando:

- Você não faz análise?!

A outra, mastigando (e de boca cheia):

- Não. Por que?!

A analisada deixou cair, fazendo barulho, garfo e faca sobre as bordas do prato de louça. Pôs as duas mãos nas bochechas, fez que não com a cabeça e disse:

- Como pode?

A outra, molhando o sashimi espetado no garfo na pocinha de sangue que escorria da picanha (o prato da moça era um dos troços mais feios e de mau-gosto que eu jamais vi):

- Como pode o quê, Valkíria?

- Não fazer análise, não valer-se do divã, não ter com quem dividir tudo... - e fazia cara de pasmo.

A outra, bochechando com Coca-Cola:

- Que ridículo, Val. Eu não preciso.

Valkíria subiu nas tamancas:

- Hum! Não precisa! É esse o discurso de todos os que mais precisam! Toma aqui! - e estendeu um cartão pra amiga, que levantou ainda mastigando, tomando a direção da fila do caixa.

Há, de fato, no analisado, essa necessidade incompreensível do proselitismo. Tudo o que você faz, que você fala, que você come, que você bebe, que você vê, que você lê, que você compra, gera, no analisado, um olhar de piedade e de superioridade, fazendo piscar na sua (dele) testa o neon imaginário onde se lê o outdoor patético que anuncia sua condição de cliente-de-um-bacana.

Volto, amanhã, ao tema.

Até.

8.6.09

DO DOSADOR

* tenho cada vez menos, por razões de foro íntimo e seguindo as atuais e vigentes diretrizes da gerência do BUTECO, exposto no balcão imaginário meu dia-a-dia. Não posso, entretanto, deixar passar em brancas nuvens (expressão que mamãe adora e usa à mancheia) a fabulosa reunião da manhã de ontem, domingo, 07 de junho de 2009, na minha cada-vez-mais-amada Tijuca, mais precisamente no BAR DO CHICO, esquina das aprazíveis Afonso Pena e Pardal Mallet. À mesa, por ordem de chegada, este que vos escreve, Luiz Antonio Simas, Luiz Carlos Fraga, Felipinho Cereal e Jean e Leo Boechat, o nosso Bemoreira (Jean é seu primo, de São Paulo, e que sofre de agudo amor pelas manhãs tijucanas). A manhã, que seguiu o mesmíssimo ritual de incontáveis domingos passados, ganhou especiais cores graças à presença - pela qual eu ansiava há semanas, semanas! - de Carlos Andreazza, do TRIBUNEIROS. Não bastasse o prazer que tive de conhecer pessoalmente o bardo imperiano e rubro-negro, testemunhamos todos o nascimento de uma idéia que dá, ao carnaval de 2010, desde já, uma dimensão antológica. Leiam aqui, o emocionado relato do Andreazza;

* terminou, ontem à noite, a papagaiada promovida pela Secretaria Municipal de Cultura, o chamado VIRADÃO CULTURAL. Não gostaria que prevalecesse a idéia, equivocada (segundo me pareceu diante do comentário feito pelo Marcelo Moutinho aqui), de que sou contra a iniciativa. Só não dá é pra achar que a Prefeitura está promovendo cultura. Não está. O que a Prefeitura fez foi promover mais de 300 eventos durante o final de semana passado. Política cultural, franca e sinceramente, não é isso. Eu adoraria saber, aliás, quanto custou a festança aos cofres públicos;

* estamos a 48 horas do início do julgamento da ação que decidirá a questão que envolve o menino Sean, no STF (falei sobre isso aqui). Não sei quanto a vocês, mas eu pretendo assistir ao julgamento pela TV SENADO como quem assiste jogo de Copa do Mundo. O tribunal ameaça pegar fogo, diversos interesses (alguns escusos) estarão em jogo e o programa promete ser imperdível;

* troço chato, incrivelmente chato, potencialmente chato, é o sujeito analisado, quer seja pelo psicanalista quer seja pelo próprio analisado, que vira-e-mexe assume ares de doutor na matéria. O analisado luta contra a espontaneidade e tem olhos de intensa piedade pra você, que é normal (ao menos pensa que é) e dispensa o divã e a hora de conversa paga. Genial, como todas as frases de sua autoria, é esta frase de Nelson Rodrigues: "Entre o psicanalista e o doente, o mais perigoso é o psicanalista.". O mais digno de dó, entretanto, é o doente. Quero ver se no curso dessa semana faço minhas digressões sobre o tema;

* dentre os destaques do mobiliário do BAR DO CHICO está um quadro do Dicró, morador da Tijuca, mais precisamente da Professor Gabizo, a poucos metros da residência oficial de Luiz Antonio Simas (vejam abaixo).

poster do Dicró no BAR DO CHICO, na Tijuca

Ficamos ali, depois que o Jean, fã do bom crioulo, fotografou a peça permanentemente pendurada à entrada do buteco, imaginando como poderia se dar a contratação do astro. Como ele oferece serviços de SAMBA, PAGODE e PIADAS, ficamos nos perguntando se há a possibilidade de montarmos diversos "combos" (um só com o samba, um com samba e pagode, outro só com piadas, por aí...) ou se vem tudo num pacote só. Felipinho Cereal ainda tentou contato com o Dicró, sem sucesso. Queríamos saber quanto nos custaria (e eu apostei que ele iria pelo simples prazer de uma cerveja gelada numa manhã de domingo) sua companhia à mesa.

Até.

6.6.09

CENAS TIJUCANAS

Semana passada deu-se, no meu prédio, uma cena de antologia, e explico. Quero fazer uma pequena retificação eis que escrevo sempre para este blog como quem respira, sem parar pra pensar muito, como já lhes disse tantas vezes, o que me faz, neste momento, ter de recomeçar. Cenas de antologia são como água da bica no edifício em que moro. Todos os dias há várias delas, e eu poderia dizer, sem medo do erro, que os jardins do prédio e seus banquinhos de praça são uma fonte permanente de inspiração também permanente. A paisagem, para quem vê de longe, lembra Mont Blanc, na França. Um mar de cabeças brancas suaviza o clima na área de lazer do edifício, e dia desses (semana passada) resolvi fazer um teste (sou, lembrem-se disso lendo isso aqui, um criador de situações que me ajudam a percrustrar com mais afinco a alma humana). Vou lhes contar tudo com a precisão que me acompanha desde o berço.

Há uma coisa na Tijuca que causa mais terror e mais frisson que - o quê?! - ameaça de bomba em prédio público: a fofoca, a expectativa da notícia quente, a novidade em primeira mão, o furo! E eu, eis a verdade nua e crua, lancei uma bomba entre os velhinhos e velhinhas que povoavam a área de lazer do condomínio na manhã de quarta-feira.

Desci às seis da manhã com meu glorioso vira-lata pelo elevador de serviço. Sentados nos bancos dispostos em círculo, cenário de todas-as-manhãs, os velhinhos, as velhinhas, as bengalas, as cadeiras-de-roda, as tosses, os terços, as mãos trêmulas, os chinelos de arminho, os roupões (há, em meu edifício, uma velha que faz natação num clube próximo, e que sai de casa de chinelo de arminho, roupão, touca de borracha azul e uma prancha), as redes de cabelo, os leques em profusão.

Recebi o bom dia coletivo de todos os dias, estaquei diante de todos, meu vira-lata sentou-se e eu disse, depois de pigarrear:

- Vocês ´tão sabendo?

E segui caminho.

Ouvi murmúrios, um burburinho impressionante, fingi que não ouvi os chamados e parti para o passeio. Dobrei à direita, entrei na Almirante Gavião, dei uma volta pela pracinha, segui pela Doutor Satamini, entrei à direita na rua Caruso, tomei um café no BAR DO MARRECO, comprei um maço de cigarro e tomei o rumo da volta, pela Haddock Lobo mesmo. Quando surgi diante do portão do edifício vi uma festa de mãos e dedos, leques abertos numa coreografia que denotava um certo desespero e chamados que me pareceram uivos de hienas diante de uma carnificina. De sacanagem, fiz que não para o porteiro e segui em frente. Fui até o ESTUDANTIL, pedi uma água com gás, escutei as expectativas da assistência sobre o Corinthians e Vasco daquela noite e voltei depois de uns 20 minutos.

Quando cheguei diante do portão, a mesma cena que me fez lembrar o cais do porto durante a partida de um navio de guerra. Lenços acenando, leques atônitos, e eu quase tropecei quando entrei no prédio, derrapando nos globos oculares que os velhinhos e velhinhas lançavam em minha direção do fundo do jardim. Novamente de propósito parei na cabine do porteiro. Acendi um cigarro, puxei conversa e ele disse:

- O que aconteceu, Edu? Elas estão agitadíssimas...

- Nada, ué.

E segui em frente.

Estaquei diante daquela clínica geriátrica portátil. Uma velha asmática arfava como um fole e disse a frase que segurou durante meu passeio graças a um dique imaginário:

- Sabendo do quê?

Sentei-me na pontinha de um dos bancos.

Olhei pro chão.

Esfreguei os olhos com a mão direita (a esquerda segurava a coleira do meu vira-lata).

Funguei (estava com coriza).

A velha ao meu lado bateu com o leque fechado no meu joelho:

- Desembucha, menino! Sabendo do quê?

Olhei nos olhos de cada uma das velhinhas presentes (só havia velhinhas nesse dia, lembrei-me disso agudamente agora).

Olhando para o chão, fazendo cara de terror, eu disse:

- Nenhuma das senhoras sabe? Mesmo?

Senti o ventinho provocado pela dúzia de nãos concomitantes.

- Então...

A asmática bateu no peito e disse:

- Conta logo, conta logo!

Elas tinham a expectativa do assassinato, do suicídio, do adultério, da traição mais rasteira, e levantei-me, devagar.

- As senhoras vão saber... mas não por mim, não me sinto à vontade... É muito grave, é muito grave.

Eu tinha os olhos saltados (eu ia dizer rútilos, mas seria uma imitação grosseira demais). Segui em direção ao elevador fingindo choque.

Deixei pra trás aflição, agonia, apostas as mais estapafúrdias. Escutei, da porta do elevador:

- Será aquelazinha do sétimo andar? Não me engana, não me engana!

Outra, inconformada:

- Que diacho, esse menino! O que é que tinha que contar pela metade!

- Metade? Não contou nem um por cento! Danado!

Subi. Tomei meu banho. Deixei o interfone tocar sem atendê-lo. Pus o terno, ajeitei a gravata, tomei do lenço, pus perfume, calcei meus sapatos e desci de escadas para pegar o carro, na garagem, sem passar pelas velhotas.

Nunca vou de carro para o trabalho, foi só mais um elemento sórdido do meu teatro íntimo.

Passei a 10 por hora por elas, de vidros fechados, ar-condicionado ligado, o rádio altíssimo.

Acenei.

Vi rostos quase desfigurados, tamanha a agonia espalhada no jardim.

Tijuca, meus poucos mas fiéis leitores, em estado bruto!

Até.

5.6.09

DO DOSADOR

* começa hoje no Rio o chamado VIRADÃO CULTURAL promovido pela Secretaria Municipal de Cultura, inspirado em iniciativa que já é sucesso, há alguns anos, na cidade de São Paulo, e é bom pararmos por aí. Não podemos também, por exemplo, e a tucanalhada já se movimenta nesse sentido aqui no Rio, "importar" a inconcebível lei municipal paulista que proíbe terminantemente o fumo em QUALQUER (com a ênfase szegeriana) lugar (é ou não inimaginável um buteco sem cigarro?). O troço começa hoje à noite e termina junto com o domingo. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas quero daqui, do balcão imaginário do BUTECO, dar-lhes outra dica, não por qualquer razão que não seja a de marcar o contraponto, dar voz e vez a quem a imprensa ignora, lançar luzes, ainda que modestas, sobre o que é bom demais. Haverá, neste final de semana, o fabuloso arraial junino da Igreja dos Capuchinhos, na fabulosa Haddock Lobo, na Tijuca, evidentemente. Dois dias de festa, quermesse, barraquinhas, esse frio que assombra a cidade e a certeza de distância absoluta da confusão e do tumulto que - anotem - marcará essa rave desnecessária. Se São Paulo necessita e aspira por eventos desse porte, por absoluta falta de generosidade da natureza (é uma cidade fria, convenhamos), o Rio de Janeiro, franca e sinceramente, prescinde disso.

* havia jurado a mim mesmo jamais pousar os olhos no blog INTERNETC, da colunista especializada em informática, Cora Rónai. Desde a última Copa do Mundo, quando o troço transformou-se num palco para demonstrações de uma capivara de pelúcia (não é piada, é a verdade), prometi jamais perder meu tempo lendo o que ela escreve (mal, na minha humílima opinião). Não vai, aqui, que fique claro, qualquer agressão ou ofensa à Cora Rónai. Filha de um homem cuja história admiro, trilha caminhos que nada têm a ver com os meus, eis outra razão pela qual também não a leio. Mas parei lá hoje, e lhes explico. Tive acesso, dia desses, à brilhante e corajosa sentença emanada da Justiça Federal a respeito do menino Sean, tremendo imbróglio que vem movimentando discussões no meio jurídico, nos cidadãos que nada têm a ver com o Direito propriamente dito e já na relação entre os países envolvidos, Brasil e Estados Unidos. Diante da sentença, extremamente esclarecedora sobre o modus operandi do qual vem se valendo o padrasto do menino, lembrei-me de um lamentável texto escrito por Cora Rónai publicado no jornal O GLOBO e reproduzido em seu blog, e que me foi recomendado por um desavisado amigo meu que torce (torcia, a bem da verdade) contra o pai da criança. Quis relê-lo. Achei o texto, ASSIM É SE LHE PARECE, aqui. E quis relê-lo para que me saltasse ainda mais aos olhos essa curiosa torcida por alguém que atenta contra a Justiça. Daí pensei: vamos ver se Cora Rónai anda falando algo sobre o assunto. Não achei nada. Mas achei, meus poucos mas fiéis leitores, um post intitulado Ê, VIDÃO, datado de ontem, 04 de junho de 2009 (vejam aqui). E já com 30 comentários (o blog de Cora Rónai é farto em comentários. Ela posta a fotografia de um de seus gatos e em coisa de - o quê? - 10, 15, 20 minutos, dezenas e centenas de leitores estão ali, babando sobre os gatos como se à espera do potinho de leite dos felinos da colunista especializada em informática. Ela espirra e seus leitores dizem "saúde" em uníssono. Ela escreve sobre o caso do menino Sean e há uma horda de mal-informados concordando com tudo, em segundos). Nele, no tal post, abaixo reproduzido, Cora Rónai espeta, uma vez mais, o mais aprovado presidente do Brasil por seu povo. Ela, como a elite raivosa brasileira, não tolera - eis a verdade resumida -, simplesmente não tolera que um homem do povo, ocupando o mais alto cargo da República, seja um êxito, um rotundo, circular, gigantesco e irrefutável êxito. Mas mais intolerável que isso, coisa infelizmente comum entre os membros da elite que não agüentam ver, por exemplo, suas empregas domésticas podendo comprar bens de consumo aos quais jamais tiveram acesso, é que a citada colunista especializada em informática permita e mantenha um comentário como o também abaixo reproduzido: "Pq o aerolula nao cai no meio do mar?".

retirado do blog de Cora Rónai
retirado do blog de Cora Rónai

Este, meus poucos mas fiéis leitores, o triste desejo do homem que assina o comentário, Oscar, ao que tudo indica - até prova em contrário - corroborado pela dona do blog.

Para saber mais sobre as tristes conseqüências da liminar concedida pelo Ministro do STF, Marco Aurélio de Mello, leiam, por exemplo, isso aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.

* falei em STF, presidido pelo lamentável Gilmar Mendes, e faço o alerta. O STF julgará, em 10 de junho próximo, a inacreditável e inadmissível (até mesmo do ponto de vista legal) ação impetrada pelo PP, partido político brasileiro que tem, em sua fileira, o também lamentável Francisco Dornelles, e que visa pisotear leis e tratados internacionais mantendo o menino Sean no Brasil, distante de seu pai, que luta (está dito assim, claramente, na sentença a que anteriormente me referi) rigorosamente dentro das normas legais pelo direito inalienável de viver ao lado de seu filho (em aguda oposição à postura do padastro, a afirmação consta também da decisão judicial). É preciso ficar de olho no STF. Lá está o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, afilhado político de Moreira Franco e de Francisco Dornelles, diretamente interessado no resultado, Presidente do PP. Estou apostando numa saraivada de pedidos de vista, o que fará o julgamento da ação arrastar-se indefinidamente. E muito preocupado com o julgamento final, temendo pelo êxito do padastro da criança e pela repercussão mundial desse tiro no pé (mais um) que o STF pode dar.

* impressiona-me, profundamente, a ausência absoluta de comentários quando lhes conto qualquer coisa sobre esse brasileiro fundamental chamado Fernando José Szegeri. O mais recente texto que tem meu irmão siamês como alvo é, mais uma vez, um deserto de comentários (vejam aqui).

Até.

SZEGERI

Estava saindo do trabalho ontem à noitinha, perto das sete, ao crepúsculo. Saltei do elevador, dobrei à esquerda ainda dentro da galeria e tomei a calçada da rua. Fui em direção à banca de jornal, à direita, comprei um maço de cigarro e pedi, na cafeteria em frente, um curto pra acompanhar o trago. Estava acendendo o cigarro quando fui abordado:

- Edu?

Ergui os olhos (feíssimos), soprei a fumaça pro alto e disse, sem reconhecer a moça diante de mim, na faixa dos - o quê?! - 40 anos, como eu, diga-se.

- Pois não?

- Boa noite, Edu! Você se importa de me dar um cigarro?

Estendi a carteira em direção a ela. Ela puxou um com extremo zelo, valendo-se das unhas, pôs o cigarro entre os lábios e fez com a sobrancelha o pedido para que eu o acendesse. Acendi. Eu tinha nos olhos (feíssimos, repito, e um maior que o outro) o neon imaginário piscando e indicando que eu não sabia com quem estava falando. Ela se adiantou:

- Você não me conhece, não! - riu e soprou a fumaça pra baixo.

Meu café chegou. Ofereci a ela.

- Vou aceitar...

Pedi outro café e fixei o olhar nos olhos da moça. Não era feia. Mas não me comovia, também. Meus olhos pediam que ela continuasse.

- Sou uma de suas poucas mas fiéis leitoras... - ficou vermelha, soprou o café, deu um golinho, pousou a xícara no pires, tragou profundamente.

Fiquei sem ter o que dizer. Sorri, apenas, um dos mais feios sorrisos que a humanidade já produziu (sou um feio absolutamente ciente da minha aridez de qualquer espectro de boniteza). Ela continuou.

- Reconheci você... tenho seu livro, leio seu blog... fiz mal em abordá-lo?

Eu disse que não, mas ela não acreditou, foi o que me pareceu.

Abriu a bolsa, remexeu uns troços lá dentro, puxou uma nota de dois reais.

- Meu café...

- Ora, deixa disso... - tentei ser simpático, o que quase nunca consigo.

Ela pôs a nota sobre o balcão.

- Faço questão.

- O.K.!

Estabeleceu-se um silêncio previsível.

Ela deu um último gole no café, tragou de novo o cigarro, jogou a guimba no chão (o cigarro pela metade), pisou para apagá-lo (ela vestia um tênis All Star), e disse, estendendo a mão (que estava geladíssima):

- Foi um prazer, viu?

- O prazer foi meu.

- Posso te perguntar uma coisa?

- Pode.

- Você me daria outro cigarro?

Estendi a carteira de novo.

- Era essa a pergunta?

Ela riu.

- Não.

- Então...

- Por que você nunca mais falou dele?

Franzi a testa (fiquei, tenho como certo, horripilante).

- Ele está bem?

Eu ia responder, ela continuou:

- O melhor personagem do seu blog. Tenho sentido falta dele. E de sua barba amazônica.

- Você o conhece?

- Do blog, apenas.

Eu ia responder, ela se despediu ainda rindo:

- Tenho que ir. Meu marido chegou! Mande um beijão pra ele, tá? Eu adoro ele!

Atravessou a rua e entrou no carro estacionado do outro lado, não sem antes acenar em minha direção.

Vejam vocês... Fernando José Szegeri, funcionário público, pai de três crianças, arrimo de família, comunista, cantor, empresário, filósofo, meu irmão siamês (e que jamais rejeitará tal condição), de férias em São Paulo, ocupando a cabeça de uma moça que dá-se ao trabalho de me parar na rua apenas para me pedir, clamando, urgentemente, que eu fale dele, o homem da barba amazônica.

Um portento, o Szegeri. Um portento.

Até.