Semana passada deu-se, no meu prédio, uma cena de antologia, e explico. Quero fazer uma pequena retificação eis que escrevo sempre para este
blog como quem respira, sem parar pra pensar muito, como já lhes disse tantas vezes, o que me faz, neste momento, ter de recomeçar. Cenas de antologia são como água da bica no edifício em que moro. Todos os dias há várias delas, e eu poderia dizer, sem medo do erro, que os jardins do prédio e seus banquinhos de praça são uma fonte permanente de inspiração também permanente. A paisagem, para quem vê de longe, lembra Mont Blanc, na França. Um mar de cabeças brancas suaviza o clima na área de lazer do edifício, e dia desses (semana passada) resolvi fazer um teste (sou, lembrem-se disso lendo isso
aqui, um criador de situações que me ajudam a percrustrar com mais afinco a alma humana). Vou lhes contar tudo com a precisão que me acompanha desde o berço.
Há uma coisa na Tijuca que causa mais terror e mais frisson que - o quê?! - ameaça de bomba em prédio público: a fofoca, a expectativa da notícia quente, a novidade em primeira mão, o furo! E eu, eis a verdade nua e crua, lancei uma bomba entre os velhinhos e velhinhas que povoavam a área de lazer do condomínio na manhã de quarta-feira.
Desci às seis da manhã com meu glorioso vira-lata pelo elevador de serviço. Sentados nos bancos dispostos em círculo, cenário de todas-as-manhãs, os velhinhos, as velhinhas, as bengalas, as cadeiras-de-roda, as tosses, os terços, as mãos trêmulas, os chinelos de arminho, os roupões (há, em meu edifício, uma velha que faz natação num clube próximo, e que sai de casa de chinelo de arminho, roupão, touca de borracha azul e uma prancha), as redes de cabelo, os leques em profusão.
Recebi o bom dia coletivo de todos os dias, estaquei diante de todos, meu vira-lata sentou-se e eu disse, depois de pigarrear:
- Vocês ´tão sabendo?
E segui caminho.
Ouvi murmúrios, um burburinho impressionante, fingi que não ouvi os chamados e parti para o passeio. Dobrei à direita, entrei na Almirante Gavião, dei uma volta pela pracinha, segui pela Doutor Satamini, entrei à direita na rua Caruso, tomei um café no
BAR DO MARRECO, comprei um maço de cigarro e tomei o rumo da volta, pela Haddock Lobo mesmo. Quando surgi diante do portão do edifício vi uma festa de mãos e dedos, leques abertos numa coreografia que denotava um certo desespero e chamados que me pareceram uivos de hienas diante de uma carnificina. De sacanagem, fiz que não para o porteiro e segui em frente. Fui até o
ESTUDANTIL, pedi uma água com gás, escutei as expectativas da assistência sobre o Corinthians e Vasco daquela noite e voltei depois de uns 20 minutos.
Quando cheguei diante do portão, a mesma cena que me fez lembrar o cais do porto durante a partida de um navio de guerra. Lenços acenando, leques atônitos, e eu quase tropecei quando entrei no prédio, derrapando nos globos oculares que os velhinhos e velhinhas lançavam em minha direção do fundo do jardim. Novamente de propósito parei na cabine do porteiro. Acendi um cigarro, puxei conversa e ele disse:
- O que aconteceu, Edu? Elas estão agitadíssimas...
- Nada, ué.
E segui em frente.
Estaquei diante daquela clínica geriátrica portátil. Uma velha asmática arfava como um fole e disse a frase que segurou durante meu passeio graças a um dique imaginário:
- Sabendo do quê?
Sentei-me na pontinha de um dos bancos.
Olhei pro chão.
Esfreguei os olhos com a mão direita (a esquerda segurava a coleira do meu vira-lata).
Funguei (estava com coriza).
A velha ao meu lado bateu com o leque fechado no meu joelho:
- Desembucha, menino! Sabendo do quê?
Olhei nos olhos de cada uma das velhinhas presentes (só havia velhinhas nesse dia, lembrei-me disso agudamente agora).
Olhando para o chão, fazendo cara de terror, eu disse:
- Nenhuma das senhoras sabe? Mesmo?
Senti o ventinho provocado pela dúzia de nãos concomitantes.
- Então...
A asmática bateu no peito e disse:
- Conta logo, conta logo!
Elas tinham a expectativa do assassinato, do suicídio, do adultério, da traição mais rasteira, e levantei-me, devagar.
- As senhoras vão saber... mas não por mim, não me sinto à vontade... É muito grave, é muito grave.
Eu tinha os olhos saltados (eu ia dizer rútilos, mas seria uma imitação grosseira demais). Segui em direção ao elevador fingindo choque.
Deixei pra trás aflição, agonia, apostas as mais estapafúrdias. Escutei, da porta do elevador:
- Será aquelazinha do sétimo andar? Não me engana, não me engana!
Outra, inconformada:
- Que diacho, esse menino! O que é que tinha que contar pela metade!
- Metade? Não contou nem um por cento! Danado!
Subi. Tomei meu banho. Deixei o interfone tocar sem atendê-lo. Pus o terno, ajeitei a gravata, tomei do lenço, pus perfume, calcei meus sapatos e desci de escadas para pegar o carro, na garagem, sem passar pelas velhotas.
Nunca vou de carro para o trabalho, foi só mais um elemento sórdido do meu teatro íntimo.
Passei a 10 por hora por elas, de vidros fechados, ar-condicionado ligado, o rádio altíssimo.
Acenei.
Vi rostos quase desfigurados, tamanha a agonia espalhada no jardim.
Tijuca, meus poucos mas fiéis leitores, em estado bruto!
Até.