16.6.09

O SONO DA TERAPEUTA

Dia desses eu saí pra beber uma cerveja com ela. Dei o telefonema na parte da tarde e disse fingindo ar blasè:

- Uma Brahma no final do dia?!

Ela, sempre disposta ao exercício sócio-etílico, topou na hora, moderníssima:

- O.K.!

Marcamos às sete da noite num bar na Praça da Bandeira. Cheguei primeiro. Estava ansiosíssimo para prosseguir minhas prospecções sobre a nefasta figura do terapeuta, do analista, do médico das almas, e quero fazer um adendo já que tenho recebido críticas de gente que, franca e sinceramente, esqueceu o humor em casa ou nunca me leu: não me interessa o bom profissional, o psicólogo competente, o psicanalista decente, o terapeuta incorrigível (não os conheço, mas devem existir, quero crer). Os holofotes aqui são voltados para os pobres-diabos que fumam, alucinados, os bacanas que os atendem, para os profissionais que vivem à custa dessa dependência que costuram, sessão após sessão, como velhas rendeiras orgulhosas de suas obras. Dito isso, em frente.

Quando ela chegou foi efusiva.

Eu, mais:

- Que beleza! Que beleza! Sente aí, sente aí! - e apontei a cadeira vazia à minha frente.

Ela sentou-se, elogiou meu Zippo, acendeu um cigarro e disse cravando os olhos nos meus:

- Quêcssemanda?

Eu, modestíssimo:

- Eu não mando, querida. Eu obedeço!

Ela riu, gargalhou até, achou graça da piada infâme e obtusa e pedimos uma cerveja belga, fortíssima (o nome é desinfluente, na verdade nem me lembro). Uma, duas, três, quatro garrafas, e ela já mal equilibrava o cigarro entre os dedos (já inchados), falava pastoso, e eu espetei:

- E a análise? Como vai a análise?

Era meu objetivo desde o início.

Disse a ela, sôfrego, como um homem com sede no Saara, que eu queria ouvir histórias absurdas vividas por ela dentro dos consultórios (ela coleciona consultórios). Essa minha amiga faz análise desde os cinco anos, e é um poço artesiano de boas histórias envolvendo os profissionais da alma. Ela, excitada com minha prospecção, disse:

- Mas você não vai publicar, né?

- Vou! Vou! É claro que vou!

Agarrei seu braço com as duas mãos, apertei de leve e disse:

- Foi pra isso que te chamei.

Ela meneou a cabeça, ajeitou os cabelos (ela se parece, a cada dia que passa, mais e mais com a Elis Regina), acendeu outro cigarro, virou num só gole a cerveja e disse:

- Fiz, durante oito anos, terapia com uma cara que dormia, solenemente, durante todas as sessões.

Eu gani:

- Conta, conta, conta!

Ela tinha dez anos (coitadinha). Por imposição dos pais que viam a filha sofrendo com complexos agudos de inferioridade, passou a freqüentar o consultório de uma tal doutora na Praça Saens Pena. Primeira consulta (ela chorava copiosamente enquanto me contava o caso): minha amiga chega ao consultório (a mãe a deixara na portaria do prédio) e é recebida pela doutora Boa Nata. Senta-se no pufe (não havia divã), confortabilíssimo. A nome-de-queijo diz, tomando do bloquinho e da caneta:

- Então, amoreco. O que te traz aqui? Conte-me com calma, muita calma, você tem quarenta e cinco minutos pra me dizer o que te traz aqui...

Minha amiga, depois de vinte minutos olhando pro teto, começou:

- É que eu acho que... - ouviu um ronco.

Ergueu-se do pufe no qual estava soterrada e viu a cabeça pendendo do pescoço da terapeuta. Com medo - não sabia, ela me contou, se essa cena fazia parte do jogo - não disse nada. Ficou em aterrador silêncio até que soou o alarme do despertador. Ouviu a voz da bacana:

- Muito bem, amoreco, muito bem... Seu caso é mesmo de análise!

Minha amiga, constrangidíssima.

- Sua mãe mandou alguma coisa por você?

A pobrezinha estendeu um envelope que guardava no bolso da calça jeans.

Boa Nata o abriu, contou as notas e disse:

- Até depois de amanhã, viu?

O roteiro seguiu por oito longos anos.

Minha amiga - já visivelmente embriagada - contou que os pais não acreditavam na história da bacana dormindo. Diziam absurdos como:

- Imagine se a doutora vai dormir durante as sessões!

- Filha, ela está apenas concentrada, concentrada! Essa gente tem métodos que não compreendemos!

Notem vocês que a bacaníssima enricou durante oito anos à custa da pobrezinha. Dormia, sonhava, roncava, babava lacanianamente, fazia poças de saliva no próprio colo e recebia, efusiva e grave, o envelopinho ao final de cada sessão.

Um dia - tentem imaginar a cena - a coitadinha pede à mãe:

- Mamãe, vá e fique na recepção. Dou um jeito de abrir a porta à certa altura.

A mãe topou, resignada.

Até que aos quarenta minutos de sessão, doutora Boa Nata roncando altíssimo como um javali, a filhinha vai, pé ante pé, e abre a porta da recepção. Chama a mãe com o dedo indicador.

E a mãe, profundamente decepcionada, a vê babando na poltrona por trás do pufe.

A mãe toma a filha pelas mãos e bate, com fúria, a porta do consultório.

No caminho pra casa, diz pra filha:

- Desculpa a mamãe?

A filha funga.

- Desculpa?

Ela diz, trêmula:

- Nem a terapeuta me agüenta mamãe... Eu sou chata, muito chata, muito chata! Ela tem mais é que dormir mesmo! Dormir! Dormir! Fugir de mim!

E enquanto o táxi deslizava pela Conde de Bonfim, a pobrezinha defendia, com unhas e dentes, o sono e os sonhos da bacana, à custa do dinheiro de seus pais.

Ao chegarem em casa, um telefonema da polícia.

Boa Nata estava morta, precisavam ouvir a menina.

Durante o jantar, o pai deu a sentença:

- Viu, filha? A doutora morreu. Morreu ouvindo você. Nunca dormiu, nunca dormiu!

E dirigindo-se à esposa, servindo-se do ensopadinho, disse olhando nos olhos da filha:

- Querida... amanhã mesmo precisamos providenciar outro profissional da alma pra nossa pequena...

Até.

Um comentário:

Pedro Franco disse...

Troféu Cena Ridícula 2009 vai para:

"Noite dessas, num dos mexicanos da Cobal, ouviu-se um soco na mesa em defesa do Chico & Alaíde, o boteco-pocket recém-aberto no Leblon. Um fã apaixonado garantia que só no Brasil - só no Brasil! - um garçom e uma cozinheira, exclusivamente com o talento, conseguem abrir seu próprio negócio, livrando-se do jugo patronal. A defesa do empreendedorismo movido a caldeiretas, garotos e salgadinhos quase o leva às lágrimas."

via: http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/chopedoaydano/