19.6.09

SAMBA E DIREITO

Encontrei-me com um colega dia desses, no centro da cidade, quando atravessava a Rio Branco em direção ao Tribunal de Justiça. No meio do caminho, não uma pedra, como diria Drummond, mas um comício do PSOL, o que significa dizer que três ou quatro aplaudiam freneticamente um histérico que berrava atrocidades através de um megafone pintado de vermelho e amarelo (havia um solzinho sorridente na corneta) num ritual que se repete a cada sexta-feira. Encontrei-me com ele, fomos efusivos no cumprimento e ele me pareceu eufórico como um pai recente:

- Edu! Edu! Finalmente encontrei a sala que eu queria! - e apontou, como um pirata avistando a ilha, para o edifício portentoso cravado na Rodrigo Silva rasgando o céu do Rio.

Dei-lhe os tapinhas protocolares no ombro e perguntei, tijucaníssimo:

- Vai ter coquetel de inauguração? - e fiz o abjeto gesto com a mão direita na altura do peito, a palma virada pra cima e os quatro dedos, tirante o polegar, empurrando a comida imaginária pra dentro da boca.

- Claro, claro! - e apresentou-me ao rapaz que o acompanhava.

Disse-me ele:

- Edu, esse aqui é um futuro colega nosso!

E deu nome ao boi, desinfluente para o que vou lhes contar.

- Futuro colega?! - perguntei ao rapaz estendendo-lhe a mão.

- Arrã. - respondeu-me formalmente abrindo um sorriso de isopor, ensaiado.

- Forma-se quando?

- Na PUC.

- Sei, mas quando?

- Quando? Depende, né? Mas na PUC, na PUC! - esfregava as mãos deslumbradíssimo.

A obsessão pontifícia do aluno-católico jorrava de seus olhos brilhantes de orgulho por trás das lentes dos óculos.

Meu amigo, tornando ao assunto da conquista imobiliária:

- Vou fazer uma roda de samba para inaugurar o escritório, sabe?!

Pôs a mão direita no canto esquerdo da boca com as unhas voltadas pro próprio rosto e disse forjando segredo:

- Sabe aquela minha cliente? Aquela, aquela... - e riu.

Contagiado pelo português castiço do estudante da PUC, pisquei e disse:

- Arrã!

- Então. Já a chamei, ela topou. Voz, um violão de sete cordas, um cavaco, uma percussão, acho que vai ficar bacana, você não acha?! No máximo 40 pessoas... o escritório não é tão grande...

Antes que eu respondesse concordando com a brilhante idéia, o aluno da PUC começou:

- Samba? - franziu a testa.

Nossos quatro olhos cravaram a fronte do universitário. Ele pôs a mão esquerda no queixo, ajeitou os óculos com a destra e disse:

- Não pega bem.

Continuamos mudos à espera do raciocínio do pontifício:

- Um escritório de advocacia pede o jazz! - fechou os olhos e tocou um sax imaginário.

Não agüentei:

- Jazz?! E por que não o samba?

- Ora, ora... - ele ainda tinha os olhos fechados - O jazz é mágico, é chique, é elegante, é sóbrio... Eu até gosto de um sambinha, sabe? Mas na Lapa, pô, na Lapa! Ou em Santa!

Despedi-me do amigo e do pontifício antes que eu começasse a ser desagradável.

Mas vejam bem vocês.

Há momentos em que eu digo, de mim para mim:

- Eduardo, largue esses conceitos, deixe de lado essas idéias pré-concebidas!

A vida real, pra fora da porta de casa, não deixa.

Até.

20 comentários:

Unknown disse...

E eu, daqui da triste e gelada Finlândia, assoviando Cartola pelas ruas de Helsinki, comento: que nojo, querido! Que nojo!

Eduardo Goldenberg disse...

Ô, querido: que alegria receber sinal de vida seu de tão longe! Faça uma boa viagem de volta e venha assoviando (ou assobiando?) um dos nossos dentro da aeronave. Um beijo.

ps: e o churrasco de rena, pô? Que tal?

FELIPE DRUMOND disse...

Edu,
Quando li seu artigo de hoje cheguei a estremecer na cadeira!
Que absurdo fez esse infeliz colega da PUC!
Tudo bem que eu também tenho um enorme carinho pela minha mãe acadêmica, mas totalmente desnecessária toda essa ênfase...
E a ofensa contra o louvável e amado samba?! O samba é oração, exaltação da vida, da alma, da felicidade... Honroso o suficiente para qualquer situação.
Enfim, coisa de jazzista...
Mas tudo bem, não há motivos pra torcer o nariz pro rapaz. Um dia ele aprense.
Abraços!

Daniel A. de Andrade disse...

Típico. Isso é o que mais tem por lá. Ainda bem que não é só.

saudações,

Daniel A.

Eduardo Carvalho disse...

Um total idiota, o pontifício. Uma besta quadrada.

Abraço,

Eduardo.

Eduardo Goldenberg disse...

Felipe: você é péssimo ator com as palavras. Vou cobrar de você a roda de samba quando inaugurar seu escritório. Um forte abraço!

Daniel: não é só; mas é quase. Abraço.

Xará: é verdade, é verdade. Você tinha que ver o rapaz discursando e falando sobre a suposta incompatibilidade entre o samba e um escritório de advocacia... Abraço!

Xandão disse...

Edu, você sabe que grandes empresas e grandes escritórios de advocacia gostam de contratar estagiários somente da PUC, UFRJ, UERJ e UFF, né? O resto, para eles, não existe. Daí vem essa marra toda. Além disso o cara é meio mané, pois discordar do gosto do chefe? Vai engolir o samba e pronto. Quando abrir seu próprio escritório, faça o que quiser. Aliás, isso é tradição entre advogados? Inaugurar escritório? Não é só abrir e começar a trabalhar? Desculpe a ignorância...

Eduardo Goldenberg disse...

Alexandre, perdoe-me apontar equívocos em vossa fala:

01) esses escritórios contratam estagiários da PUC, UFRJ, UERJ e UFF porque são as melhores faculdades, indiscutivelmente. Pode ser que encontre-se um bom aluno noutra faculdade, mas é difícil, viu? As faculdades de Direito crescem como piolho na cabeça dos fãs de Santa, se é que me faço entender;

02) quem disse que o pontifício aluno era estagiário do meu amigo?;

03) é praxe, sim, uma comemoração para inauguração de qualquer escritório. De advocacia ou mesmo de psicanálise (só que os psicanalistas cobram o convite para o coquetel).

Abraço.

Andre disse...

Edu, meu amigo, tenho pena do jovem advogado que ouviu tamanha asneira. Imagino apenas a trilha sonora que o filho da PUC referido irá colocar quando inaugurar o escritório dele ... Seria Kenny G?

Eduardo Goldenberg disse...

André: uma tremenda honra recebê-lo pela primeira vez no balcão. Quanto à trilha sonora do escritório do cara, quero crer que sim. Kenny G. com KY, que esses modernosos adoram essas, digamos, instalações. Forte abraço.

Daniel Banho disse...

O que me irrita é essa mania de falar "sambinha"... É SAMBA! Assim, com letras garrafais!
Adorei o blog e me emocionei com a entrevista com o Wilson Moreira.
Voltarei sempre.
Abraço!

Eduardo Goldenberg disse...

Daniel: seja bem chegado. "Sambinha" foi apenas uma das pérolas lançadas pelo pontifício aluno. Dia desses conto mais sobre ele, com quem já encontrei outras vezes.

Obrigado pelas elogiosas palavras, a entrevista do Wilson Moreira ficou mesmo fabulosa, como de se esperar.

Ele é grande.

Um abraço.

Diego Moreira disse...

O jazz merece todo o nosso respeito. O samba é que não merece todo esse desrespeito do puquiano. O samba é primo do jazz - disse o mestre Nei Lopes.

No mais é o mesmo classismo de sempre. De quem acha que samba é música de preto e pobre e que o jazz é a única música afrodescendente que tem alguma sofisticação.

Coisa de gente que não conhece nada de harmonia, de linhas melódicas, de divisão rítmica e que curte bossa nova sem saber ou admitir que ela não passa de mais uma forma de samba Samba de branco, feito em apartamento.

Coisa de gente que, em geral, tem pânico da nossa história e se envergonha de nosso processo civilizatório por ele ter contado com a participação de africanos e ameríndios, e não só de europeus.

Enfim, como não poderia ser diferente, um nojo.

Abraços, Edu.

FELIPE DRUMOND disse...

Edu,
O altivo aí deu o que falar!
Esses jazzistas... vou te dizer, não sabem o que estão perdendo.
Coisas da aristocracia Edu, coisas da aristocracia.
Mas vem cá, e depois das 19:00h, o cara continuava besta desse jeito?
Tem que dar uma aula de botequim pra ver se ele aprende e desenvolve o gosto apurado pelo samba.
Abraços.

Eduardo Goldenberg disse...

É isso, Diego, um nojo. Um nojo. Forte abraço.

Felipe: permita-me as observações... (01) quem é o altivo?; (02) "esses" quem, cara pálida?; (03) quem falou em hora?; (04) samba não se aprende no colégio, nem botequim.

Um abraço.

FELIPE DRUMOND disse...

Edu, aí vão as respostas:
(01) Altivo foi o comportamento do rapaz. Altivo porque parece que tinha qualquer coisa de arrogante, presunçoso;
(02) "Esses jazzistas" = pessoas que supervalorizam o jazz (jás) e se portam assim como o pontifício... rs; (03) ninguém falou na hora. É uma suposição. Vai ver com chopes a mais o cara aí pudesse deixar de ser besta; (04) disso também sei. Aliás, grande parte das coisas boas e nobres da vida nunca se aprendem no colégio. A "aula" foi no sentido figurado. Uma espécie de toque de realidade.
Ainda rio com a história mesmo já a tendo lido algumas vezes.
Abraço.

Eduardo Goldenberg disse...

Felipe, Felipe: você lerá o texto 1.000 vezes e rirá 1.000 vezes. O homem que não ri de si mesmo, meu caro, é um triste.

Bezerra disse...

O silêncio, às vezes, pode ser a mais pertinente e sensata forma para se elogiar (ou, mesmo, comentar) um texto. Conselho de bobo, xará.

Eduardo Goldenberg disse...

Felipe Bezerra: depois de um longo tempo, hein?, tremendo prazer recebê-lo no balcão. O seu xará, meu caro, é um brincalhão. Tome nota. Um forte abraço, seja bem chegado de volta.

Bezerra disse...

Muito obrigado pela recepção, Edu.

Forte abraço!