14.10.09

HÁ UM ANO, NO BUTECO...

Durante esses exercícios fascinantes de regressão que faço para escrever a série A TIJUCA EM ESTADO BRUTO, e mamãe sempre me diz espetadíssima - "Edu, mas que memória prodigiosa, meu filho!" -, tenho me deparado com coisas absolutamente hilariantes e dignas de registro. Papai, dia desses, diante de mim - bebíamos uísque em minha casa -, pedindo mais gelo e mexendo os cubos com o médio da mão direita, disse tentando ser grave (ele não consegue):

- Quer escrever sobre mim, escreve... Mas não põe meu nome todo, pô!

Dito isso, em frente, que é dele mesmo que quero falar, hoje.

Papai, como já lhes disse noutras oportunidades, é um homem que já acorda com um colete imaginário, desses com vários bolsos. Nesses bolsos, as frases que ele vai soltando, diariamente, diante das situações que se apresentam no curso do dia (todas rigorosamente previsíveis). Eu e meus irmãos, o Fefê e o Cristiano, e também mamãe, e também minha menina e também minha queridíssima cunhada, aprendemos a fazer disso, dessa previsibilidade, dessa coerência verbal e comportamental, um trampolim para as gargalhadas inevitáveis.

O troço é impressionante e, ao mesmo tempo, apaixonante. Se acontece de um dia, por qualquer razão (pode ser uma gripe, uma tosse), papai deixar de ser e de agir como previsto, abate-se sobre a família uma espécie de luto interno que vou lhes contar! E isso por quê? Porque quando o previsível é um chato de galochas, a assistência bufa, maldiz o pobre-diabo, grita frases como "de novo?", "lá vem ele!", essas bossas que espelham repulsa. Mas quando o previsível é um sujeito adorável como meu pai (amado por toda a família de forma aguda, e seus mais recentes filhos, Felipinho Cereal, Fernando Szegeri e Luiz Carlos Fraga não me deixam mentir), o que se vê é um festival brutal de guinchos, gargalhadas, engasgos e rubor na face.

Vamos a algumas situações (estou pensando em algumas delas e estou, confesso, dando soquinhos na mesa diante do monitor, de tanto que rio).

Estamos todos à mesa, jantando. Tenham em mente, antes, que papai é um homem que madruga, acorda cedíssimo! A troca de olhares entre nós deixa evidente que é a vez do Cristiano fazer o comentário que dará ensejo à frase pronta de meu pai:

- Hoje eu acordei às nove, atrasado para o trabalho...

Papai larga os talheres e diz:

- Eu acordei tarde também! Tardíssimo!

Ninguém pergunta nada - de propósito. Mas ele prossegue:

- Acordei quatro e quinze!

E aí vem o comentário meteorológico, igualmente obrigatório para meu velho:

- Estava fazendo doze graus! Doze!

Na semana seguinte. A Lina, olhando para o próprio prato:

- Dormi muito mal, essa noite...

Mencionado o assunto, papai bufa:

- E eu? E eu?

Ninguém diz um "a".

- Acordei às três e meia! E fazia um frio daqueles! Doze graus!

Sem contar os comentários gerados por frases pré-moldadas.

Um de nós pergunta pra mamãe:

- Tem tido notícias da tia Noêmia, mãe?

E papai, eufórico:

- Eu gosto da Noêmia! Gosto da Noêmia! Uma lutadora!

Faz que sim com a cabeça, levanta as palmas da mão pra cima e diz:

- Como sofreu!

O Fefê comenta, como quem não quer nada:

- Fui ao homeopata hoje e senti tanta falta do doutor Mauro...

Ele:

- Dr. Mauro!!! Tem que tirar o chapéu pro doutor Mauro! Insubstituível!

E a mesa, qual as mesas de Kardec, na França dos idos do século XIX, girando de tanto que rimos.

Eu provoco:

- Sabem com quem falei hoje? Com o Arnaldo, pai do Mauro...

E papai, fazendo cara de dor:

- Coitado! Tem dor de cabeça há mais de 40 anos! Que coisa impressionante!

Fefê vai ao chão pra rir de joelhos.

Mamãe está bebendo vinho. Após o jantar, ela diz:

- Vamos de Frangelico?

Papai gane:

- Vai misturar?! Prrrrr! Prrrrr!

Uma explicação para a onomatopéia: esse "prrrrr" é um som que papai emite, constantemente, quando contrariado. Deriva da palavra "porra". É que nós, quando pequenos, ouvíamos constantemente:

- Palavrão na frente de sua mãe, não, hein?! Ouviram!

O máximo que papai se permite - e isso até hoje - é esse "prrrrr".

Mas tem mais, tem mais!

No restaurante, seja qual for o restaurante e seja qual for o atendimento (pode ser de excelência), papai dirá, em algum momento e em tom de reclamação aguda, como num transe mediúnico:

- Chame o gerente! Chame o gerente!

Papai é servido de café. O café está pelando, 90 graus centígrados. Ele virará a xícara num só gole e dirá, com os olhos lacrimejando:

- Gelado, pô! Gelado!

O que rendeu a ele, éramos pequenos, o apelido de "língua de couro".

E pra finalizar. Papai, sabe-se lá por qual razão, tem, desde sempre, uma implicância olímpica com o Cristiano, o caçula, no que diz respeito a restaurantes e banheiros. Explico. Vamos ao LA MOLE, por exemplo (nada mais tijucano que almoçar, aos domingos, no restaurante da Marquês de Valença).

Sentamo-nos. Vou ao banheiro lavar as mãos. Volto. Mais uns minutos, é a vez do Fefê, que anuncia:

- Vou dar uma mijadinha - antes da Lina ele era dado a esses anúncios.

Volta.

Papai quieto, na dele, bebendo sua cervejinha.

Mamãe pede licença, vai ao banheiro e volta.

Até que o Cristiano anuncia:

- Com licença...

Meu pai, olhos flamejantes:

- Onde você vai?

Eu, Fefê e mamãe já engatinhando no chão, de tanto rir.

Ele, coitadinho, responde:

- Vou ao banheiro.

E papai:

- Prrrrrrrrrrrrrrr! De novo!? Mas que mania de ir ao banheiro!

Nunca entendemos esse "de novo", muito menos a marcação com o moleque.

Volto ao assunto noutra altura, que papai é fonte inesgotável de boas histórias.

Até.

3 comentários:

Blog do Pian disse...

Começar o dia com (tão deliciosas) leituras sobre a sagrada instituição da família é uma benção para um conservador reacionário como eu, Goldenberg.

Abs,

R.Pian

ígor moreno disse...

Haha! Muito bom, muito bom...

Olga disse...

Edu, essas histórias da sua família são muito bacanas e engraçadas. A do post abaixo, sobre seus avós, é comovente.

"O bonito é que, invariavelmente, na hora da despedida, o pau estancava entre meus avós, com um carinho que só muitos anos de casamento permite."

Bonito mesmo!