30.5.10

COMIDA DI BUTECO, O EVENTO

Luiz Antonio Simas escreveu mais um texto de antologia (aqui). Um texto que é uma espécie de carta aberta aos organizadores do evento COMIDA DI BUTECO. Como a que eu escrevi, aqui. Ei-lo:

"Começou ontem aqui no Rio de Janeiro o evento Comida di Buteco. Sobre ele escreveu com rigorosa propriedade o polemista carioca Eduardo Goldenberg. O jornal O Globo trouxe, em encarte, detalhes sobre o babado. A coisa, como se percebe, promete ser movimentada.

Em resumo: trinta e um restaurantes apresentam suas criações, o público atribui notas aos pratos, temperatura da bebida e higiene dos locais. Em meados de julho, em um show com vários artistas e Djs, os vencedores serão anunciados. Dentre os patrocinadores do furdunço, vejam só, temos uma universidade privada, uma marca de maionese, uma cervejaria, uma corretora de imóveis e uma companhia de aviação.

A realização do evento sugere algumas reflexões sobre as relações entre cultura e economia. Vou pegar, de leve, esse bonde e dar meu pitaco.

Entendo cultura como todo o processo humano de criação e recriação de formas de viver. Cultura é o conjunto de padrões de comportamento, elaboração de símbolos, visões de mundo, crenças, hábitos, tradições, anseios e que tais que caracterizam e distinguem um determinado grupo social.

É nesse sentido que a própria economia deve ser vista como um cadinho do processo cultural que caracteriza os povos. As relações econômicas também são elementos constitutivos do modo de ser de um grupo - e aí podemos refletir sobre uma pá de coisas, dentre elas a maneira como diferentes grupos socias encaram os atos de consumir, trocar, vender, comprar, se desfazer de um bem, valorizar ou não um objeto, etc... Tudo isso é elemento constitutivo de cultura, feito comer, dançar, rezar, enterrar os mortos e acordar as crianças.

O que esse Comida di Buteco propõe, infelizmente, se inscreve numa inversão perigosa: é um exemplo bem acabado - e assustadoramente corriqueiro - de submissão da cultura à economia. Explico.

A ideia do festival me parece ser a de transformar o que seria a cultura de botequim em um bom negócio para todos. Tento acreditar, sinceramente, nas boas intenções do babado e é possível que os envolvidos no evento achem de fato que estão valorizando o boteco. Sinto dizer que não estão.

O problema é que ao invés de entender a economia como parte constitutiva da cultura - esse poderoso campo que engloba nossos atos e nos define como homens humanos - essa perspectiva inverte tudo e transforma a cultura em parte constitutiva da economia - esse campo que, quando determinante, nos define como meros consumidores, desumanizados por conseguinte.

Insisto: a economia é que deveria ser encarada como um dos aspectos da cultura. O festival transforma a cultura em um mero elemento submetido aos ditames do mercado. Quando isso acontece, o que era cultura perde toda a carga de representações de modos de viver dos homens e se transforma, esvaziada de sua dimensão vital, em simples evento ou entretenimento, como queiram.

O Comida di Buteco é isso: um evento, desprovido de qualquer outro valor que não seja o de movimentar a economia da cidade, divulgar os patrocinadores, difundir a imagem dos participantes e aumentar o faturamento dos restaurantes envolvidos - objetivos legítimos, diga-se de passagem, ainda que não me comovam e que eu lhes faça sérias restrições.

O problema - gravíssimo! - é que a cultura, quando transformada e empobrecida em mero evento, morre. O festival, sob o pretexto de valorizar o botequim, joga contra exatamente o que diz querer valorizar.

Quando digo que a cidade tem alma, uso evidentemente uma metáfora para demonstrar que a cidade tem cultura. O botequim é, pois, um dos elementos constitutivos da cultura carioca. Certa feita escrevi o seguinte sobre o tema:

"O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns..."

É o nosso jeito, a nossa maneira, de recriar o mundo, inventar a vida, beber o passado, digerir o presente e projetar futuros. Nos definimos, dessa forma, como membros do nosso grupo e criadores de cultura - humanizados, portanto.

O Comida di Buteco cumpre muito bem o objetivo de agitar a cidade, movimentar a economia, colocar as pessoas na rua e o escambau. Não consigo, porém, deixar de ouvir uma voz, vinda sabem os deuses de onde [será o rugir do rótulo da maionese patrocinadora da coisa ?] , que parece inverter as lições do velho vagabundo:

- Não sois homens! Consumidores é que sois!

Tolo é quem pensa que o homem é desprovido da humanidade que lhe define quando morre. Mesmo morto, defuntinho da silva, o homem segue vivo na memória da sua gente, como dinamizador, pela lembrança, da tradição.

O homem só é desprovido de sua radical humanidade - morto, sem vitalidade - quando deixa de criar cultura e vira um reles espectador de uma vida que já não lhe é mais pertencimento."


Até.

4 comentários:

AOS QUARENTA A MIL disse...

É, mais é de dinheiro que o pequeno comerciante sobrevive e sustenta sua familia.
Ontem o dono da padaria ao lado da minha casa, comentava sobre esta enorme dificuldade dos pequenos se manterem, assim são os donos de butecos, quando são promovidos a grifes , estão em busca de mais conforto através do seu trabalho, que todos sabem , tanto frequentadores quanto donos que é um trabalho árduo. Na sexta estive no Antigamente o povo da mesa pediu os bolinhos com a bandeirinha do Brasil, que tinham apenas gosto de bolinho. Eu pedi uma batata frita básica e minha original estava gelada, ponto final, só não gostei do aperto , estava lotado de gente e sou avessa a falta de espaço pra esticar as pernas. Simples assim. Conheço um monte de outros butecos vagabundos pra frequentar , tô nem aí, hoje devo ir ao Costela com Inhame do Assis pra almoçar, ou no bar do peixe, butecão dos bons !!!!

Minhas amigas disseram na mesa, que a comida do dia a dia do Aconchego é uma delicia!!!

Unknown disse...

"O festival, sob o pretexto de valorizar o botequim, joga contra exatamente o que diz querer valorizar."
Na veia, Simas!
Assino embaixo.
Abração de Niquíti.
Caíque.

Unknown disse...

Não quero defender este evento em particular mas essa questao é muito mais complicada do que parece. Muitos elementos enraizados na nossa cultura surgiram como "um evento, desprovido de qualquer outro valor que não seja o de movimentar a economia da cidade, divulgar os patrocinadores".

Um exemplo é o caso do jogo do bicho, criado no fim do seculo 17 pelo barão João Batista Viana Drummond tendo como objetivo angariar fundos para o Zoológico do Rio - portanto, desprovido de qualquer outro valor que não movimentar a economia local.

Hoje, o jogo do bicho faz parte da cultura do Rio de Janeiro e é difícil imaginar a cidade sem as bancas em suas esquinas.

Luiz Antonio Simas disse...

Casab, o Comida Di Buteco está para o botequim carioca como a Rapadinha do Rio está para o jogo do bicho. É um embuste. Uma leitura mais atenta do texto vai mostrar que eu não falei do evento que gera, eventualmente, cultura - falei da cultura que vira evento. É essa a questão.
Só para constar - o Barão de Drummond implementou o jogo no final do século XIX, e não no XVII, pouco depois da proclamação da República.

Abraço