18.1.11

MARIA DE LOURDES, A EVANGÉLICA - I

Rua Pardal Mallet, na Tijuca, pacatíssima rua entre as movimentadas Campos Sales e Afonso Pena. Ali nasceu, há 21 anos, Maria de Lourdes, filha de Otília e Alonso. Filha única, diga-se. Cresceu, a menina, com uma obrigação que durante um bom tempo representou praticamente um trauma em sua vidinha:

- Quando perguntarem seu nome, filha, diga Maria de Lourdes com "u", igualzinho ao nome da tua avó! - pregava o pai.

E a menina, coitada, foi uma cumpridora fiel da determinação paterna. Na escolinha, no ginásio, durante as brincadeiras com as meninas na calçada, bastava alguém perguntar-lhe o nome e a resposta vinha, quase-mediúnica, automática:

- Maria de Lourdes, com "u".

Já aos 15 anos a menina chamava a atenção.

- Uma potra! - dizia salivando, a vizinhança.

E era (e é), de fato, uma potranca.

Morena, esguia, seios fartos e firmes a dispensar retoques ainda que imaginários, pernas (ah, as coxas...) esculpidas à mão, uma batata reluzente, um quadril desejado por mil mãos, um rosto mais-que-perfeito, um sorriso estonteante, cabelos lisos, olhos levemente puxados e pretos, o fato - em resumo - é que Maria de Lourdes era objeto de desejo até dos que não a conheciam. Era dessas que pareciam fabricadas pelo sonho coletivo - a mulher em estado bruto.

Havia, entretanto, um empecilho a obstar a sanha dos homens do pedaço: Otília e Alonso eram evangélicos. E sendo evangélicos, e tendo uma única filha, faziam da menina um bibelô privado evidentemente privado de tudo o que sugerisse desvio. Alonso era dono de três padarias no bairro, trabalhava das 5 da manhã às 8 da noite. Otília, dona de casa. A única obrigação do casal era a educação, rigorosa, de Maria de Lourdes. E a obediência à igreja, é claro. Iam à igreja rigorosamente todos os dias - e lá ia Maria de Lourdes, desde bebezinha, acompanhando os pais. A igreja era uma dessas facções ligadas a um pastor picareta, mas o casal mantinha a vista obnubilada para o noticiário policial. O casal mantinha, em casa, um bunker cristão: bíblias espalhadas por todos os cômodos, a TV sintonizada sempre na estação ligada à máfia evangélica, o rádio que era ligado apenas no horário da benção da água, fotos de pastores, apóstolos, missionários, tudo espalhado pelos cômodos do apartamento, e foi nessa meiúca que foi crescendo a diabólica Maria de Lourdes.

Eu disse "diabólica" mas é claro que o adjetivo só nasce e só faz sentido através do prisma dos olhos com antolhos de seus pais. Maria de Lourdes era normalíssima.

Mais que normalíssima - eis o cerne do que quero lhes contar - era gostosa.

Quando completou 16 anos (tem aí o início do drama da menina) os pais a mandaram, cheios de um orgulho tremendo (e como os evangélicos usam e abusam da palavra "tremendo"), para uma colônia de férias cristã, em Campo Grande. Sessenta jovens (30 moças e 30 moços) guiados por 10 monitores passariam 30 dias num sítio de propriedade da igreja da qual faziam parte os pais de Maria de Lourdes.

Foi - está no diário da moça, mantido em segredo - um período modorrento. A agenda era a mesma: acordar às 06h, fazer a higiene, fazer o desjejum, orar (evangélicos não rezam), assistir a uma palestra, almoçar, fazer a sesta, estudar a Bíblia Sagrada, lanchar, orar, fazer a higiene, orar, jantar, orar e dormir. E ao lado de 59 jovens fanáticos, guiada por 10 monitores determinados, Maria de Lourdes sentiu-se estranhíssima. Tinha pensamentos pagãos, não dormia à noite, e uma imagem a perseguia: a de Alexandre, o filho do porteiro de seu prédio. Surfista, corpo atlético, dois anos mais velho que ela - e só lá, em Campo Grande, deu-se conta de que sentia aguda falta da presença daquele menino na calçada do edifício, quase sempre de bermuda e sem camisa, o tórax de Tarzan (apud Nelson Rodrigues) à mostra, o cabelo parafinado, os pés descalços, as mãos enormes, do qual sempre desviava a vista.

Voltaram, os jovens.

Otília e Alonso foram buscar a menina no Planetário, na Gávea, ponto de desembarque do ônibus da excursão. Era um domingo. A mãe foi efusiva ao abraçar a filha:

- Gostou, Maria de Lourdes?

Antes que a menina respondesse o pai a puxou pelo braço e disse:

- E aí, filha? Aproveitou? Vamos direto ao culto! Ao culto!

Maria de Lourdes, no banco de trás, sentia o coração badalando as amígdalas. Foi praticamente muda durante o trajeto até a Tijuca, dizendo apenas uma sucessão de "arrã" para cada pergunta dos pais. Foi saudada, a menina, ao chegar à igreja.

Os pais estranharam muito quando Maria de Lourdes vomitou, em fortes golfadas, durante a pregação do pastor.

- Desidratação, na certa... - resmungou a mãe.

Vomitara de nojo, entretanto.

E assim foi seguindo a vida da pequena família. Maria de Lourdes não esqueceria jamais o instante da chegada no edifício depois daquele domingo. Teve um surto de umidade quando viu Alexandre no portão, pouco antes do carro entrar na garagem. Lançou, sobre ele, um olhar rápido (que a fez tremer no banco traseiro) - e percebeu o sorriso do garoto em sua direção.

No dia em que completou 21 anos - e Maria de Lourdes era, então, uma potra no auge da raça - deu-se a tragédia - ou o milagre. Durante a noite da véspera a menina entrara na suíte de seus pais. Sem ser notada, abriu a porta do pequeno banheiro, teve o zelo de fechar o basculante, e abriu o bico do gás do aquecedor. Fechou, com mais cuidado ainda, a porta do quarto de seus pais. Foi à cozinha, molhou dois panos de chão e vedou a porta do minúsculo quarto que dava para o pequeno corredor.

Às sete da manhã postou-se na janela que dava frente para a rua. Encharcou-se quando viu Alexandre saindo com a prancha. Fez um "psiu" baixíssimo, o suficiente para chamar a atenção do garoto. Cruzaram os olhares. Ele, incrédulo, apontou pro próprio peito estufado e disse "eu?". E ela fez sinal de "suba!" com o indicador da mão direita. Alexandre encostou a prancha na parte interna do edifício e subiu, descalço, pela escada, em direção ao segundo andar. Excitadíssimo, diga-se. Há anos sonhava com a atenção de Maria de Lourdes e dedicava horas ao próprio e solitário deleite com aquela potranca no pensamento. A moça o aguardava de portas abertas, com um sorriso no rosto ainda mais escancarado que a porta. Ele estacou aquele metro e oitenta de músculos diante dela:

- Bom dia, Alexandre... - quase sussurrando.

- Tudo bem? E... cadê seus pais, Malu?

Aquela intimidade do "Malu" a fez sentir-se ainda mais suada.

- Saíram. - disse, cínica.

- Não voltam?

- Só no meio da tarde.

Maria de Lourdes atracou-se com o cara que, àquela altura, não acreditava naquilo que vivia. Entraram e ela disse:

- Hoje é meu aniversário...

- Eu sei! - ele disse, mentindo.

- Quero você de presente.

E tirou o pijama (Maria de Lourdes dormia de pijama), e ficou nua, e abaixou a bermuda do rapaz, e foram horas de um sexo brutal feito no sofá da sala, na cama da menina, de pé, na cozinha, e a pujança dos 23 anos de Alexandre premiaram a evangélica com um amor tremendo que a deixou tremendo por muito tempo, ainda depois de ele ter saído sob o pretexto da chegada iminente de Otília e Alonso.

Ela ainda foi à janela, deu um adeus emoldurado por suspiros de ai-Jesus, viu Alexandre dobrar a esquina, vestiu-se, ajeitou os cabelos, retirou os panos de chão do vão da porta, entrou no quarto, certificou-se de que só mexera na maçaneta com as mãos cobertas pela malha do pijama, pôs os panos de volta e ligou pro 190. Deu as coordenadas à atendente, disse ter acordado e visto a porta do quarto dos pais fechada, os panos vedando a saída do ar, o cheiro de gás no corredor e esperou cerca de 20 minutos até a chegada da patrulha.

- Seu nome, menina! - disse o policial, já invadindo o apartamento.

- Maria de Lourdes, moço. Maria de Lourdes, com "u".

Até.


3 comentários:

Caio Cabelo disse...

Pura que o pariu!!! Lindo!!

M. Vidal disse...

Ducaraio, foda meu irmão!!
Beijo

alexandre disse...

Que inveja do meu xará....

Que presente de aniversário!!!!!