2.2.11

DIA DOIS DE FEVEREIRO - PEQUENAS CONFISSÕES

Eu acho que já lhes contei isso algumas vezes, mas como sou um homem obsessivo, orgulhoso de minhas idéias fixas, não me importo de lhes contar mais uma vez, tudo de novo (acho que dessa vez com mais detalhes). É que hoje é dia dois de fevereiro, dia de festa no mar, e nesse dia - sempre! - quero ser o primeiro a salvar Iemanjá (apud Dorival Caymmi). E é isso - o por quê disso - que quero lhes contar hoje.

Sou o filho mais velho de um casal tijucaníssimo, da sola dos sapatos ao ponto mais alto da cabeça. Responsáveis diretos pelo barro que me molda, é a eles que atribuo o que tenho de bom. O que tenho de ruim, bem, devo à tumultuada trajetória pela qual passa todo ser humano: e só os canalhas mais sórdidos são inteiramente bons - se é que me faço entender. Um casal tijucaníssimo mesmo, inclusive se tomarmos os estereótipos como parâmetros. Ela, torcedora do America, ex-aluna do Instituto de Educação, na rua Mariz e Barros, salgueirense, normalista, recitava quando menina - foi aluna de sua madrinha, Dalila Geraldo. Ele, vascaíno, ex-aluno do Instituto La-Fayette, na rua Haddock Lobo, freqüentava o Divino, na esquina da mesma Haddock Lobo com Matoso, e a Petrobras foi seu único emprego. Avô materno rubro-negro, ex-servidor do DNER, nunca mais foi ao Maracanã depois da tragédia de 1950. Avó materna, dona-de-casa, vendedora da Avon, da Jafra, eles também moradores da Tijuca. Avô paterno vascaíno, romeno ou russo (nunca se soube ao certo), chegou ao Brasil fugindo de Odessa, trabalhou com vendas a vida inteira, casado com minha avó paterna, ambos judeus, também tijucanos. Vovô Milton, católico não-praticante. Vovó Mathilde, católica até certa altura e espírita convicta a partir de meados dos anos 50. Vovô Oizer freqüentava a sinagoga e reunia-se, todas as tardes, com velhinhos judeus na praça Afonso Pena, quando gastava o verbo, em ídiche. Vovó Elisa, judia. Quando morreu, numa casa de repouso destinada às damas israelitas, descobrimos que freqüentava um centro espírita, às escondidas, na Praça da Bandeira, com a anuência das enfermeiras que acobertavam seus passeios pelas aléias de Kardec.

Papai nunca gostou de judeus - a razão é o menos importante. Sentia-se fora d´água entre os que diziam "seus". Apaixonou-se por mamãe, uma goy, e encantou-se pela umbanda quando viu tio Hique, irmão de vovó Mathilde, recebendo o caboclo Tupiara numa sessão, na Tijuca. Disse-lhe o caboclo, dando-lhe tapas muito firmes no peito:

- Ainda vamos trabalhar juntos, filho!

Anos depois, papai saiu dançando, sem mais nem menos, riscando ponto no tapete arrancado com fúria com os próprios pés, dentro de casa: era o caboclo Tupinambá, camarada de Tupiara, o mesmo que no dia 26 de abril de 1969 apareceu pra ele, na cabeceira da cama, avisando que eu, esperado para o final de maio, chegaria no dia seguinte. Como de fato cheguei. Mamãe nasceu com vovó já espírita, foi presidente da Juventude Espírita do Rio de Janeiro, inclusive, mas rendeu-se também aos encantos do caboclo e dos tambores. Ele só a chama de "formosa". E ela recebeu avisos também, em forma de sonhos recorrentes, durante a gravidez, como lhes contei aqui, em 02 de fevereiro do ano passado:

"Consta que mamãe, grávida de mim, seu filho mais velho, tinha um sonho recorrente. Na praia, na areia, diante do mar revolto, mamãe chorava angustiada olhando pro mais alto, onde nuvens carregadas davam cores mais trágicas a seu medo e seu temor. Das águas do mar, emergia uma moça bonita, com olhos doces e feição amorosa, trazendo uma criança no colo que era oferecida à minha mãe. Mamãe chorava - e chorava muito. Negava o presente das águas, e a moça bonita mantinha os braços estendidos em sua direção com expressão ligeiramente autoritária e impositiva. Passado um tempo, rendida à insistência daquela mulher, mamãe caminhava pro mar. E quando seus pés tocavam a espuma das ondas que arrebentavam na areia, o céu se abria, o mar acalmava e a moça desaparecia nas profundezas das águas. Era quando mamãe me punha no colo, os olhos lavados de lágrimas e maresia. Hoje, dia de festa no mar, dia de Yemanjá, dedico à minha mãe minha mais profunda gratidão por ter me criado como me criou. Agradeço aos deuses que me emocionam a cada dia mais pelo fato de eu ter vindo ao mundo através dela, a mais doce das mulheres, rigorosa, impetuosa, generosa acima de tudo, imagem e semelhança da moça do mar."

Nesse caldeirão, vim ao mundo.

De nada me lembro do que contam meus pais, do que contava minha avó: eu, em tenra idade, tinha diálogos intermináveis com o mar. Não havia pai, mãe, avó, não havia santo ou demônio que me tirasse da beira d´água quando eu ia à praia. Gritava palavras ininteligíveis, brandia os braços, fazia saltar as veias do pescoço, e invariavelmente só voltava pra barraca, com um sorriso no rosto, depois de encerrado o bate-papo com o invisível. E em casa, era comum a cena:

- Dudu? Vem, filho. Tá na mesa.

- Péra. Tô brincando de arco-e-flecha com os índios.

Passei grande parte da infância no clube Monte Sinai, clube tijucano que ficava ao lado do prédio em que morávamos. Namorei uma judia e quase fui fuzilado por meu pai. A primeira mulher que conheci biblicamente era uma mulata, e justo em Volta Redonda, durante um torneio de natação, a mesma terra que viu nascer a mulher que me ensinou a sorrir, minha menina. Tenho dezenas de Bar-Mitzvah no currículo, recito trechos inteiros da Torá, de cabeça (para desespero de meu velho), me amarro em conversar com Tupinambá quando ele baixa no terreiro de papai, tenho vaga lembrança das idéias que troquei com Tupiara na pele de meu tio Hique, não perco por nada a missa no dia de São Sebastião, no dia de São Jorge, no dia de São Judas Tadeu, virei devoto de São Peregrino, tomo remédios fitoterápicos recomendados pelo espírito de um médico curitibano, gosto de tomar passe em centro espírita, fico impactado e emocionado num terreiro de candomblé, travo a garganta com os tambores e os cantos da umbanda e já conversei com preto velho, com seu Zé, com Maria Padilha, com o povo da rua. Minha religião, definitivamente, é o Brasil.

Jogar flores no mar no dia 31 de dezembro é um ritual que acompanho desde que nasci. Papai, quando morava com eles, saía de casa antes das seis da manhã carregando maços e maços de palmas brancas. Sempre na Praia Vermelha, na Urca, e ele sempre me mostrava o morro que, visto do calçadão, se parece com o perfil de um índio velho. Eu o imitava, cheio de orgulho. Ia ao mar, molhava os pés, entrava um pouquinho na água com as palmas nas mãos, dizia uma coisa ou outra, conversava com Iemanjá e fazia minha oferenda na expectativa de que fosse bem aceita.

De uns anos pra cá, me foi dito que sou filho de Ogum. Ganhei das mãos generosas de Luiz Antonio Simas seu ileke de contas vermelhas, pretas e azuis. Somos filhos do mesmo pai. E Exu sopra, diuturnamente, no meu ouvido - fui duas vezes consultar Ifá, e foi batata. Depois, o mesmo Simas deu-me um de seus tesouros (entregou-me, comovidíssimo, no dia de meus 40 anos): a imagem de São Jorge Guerreiro, meu pai Ogum, que guardava o congá do terreiro de xambá comandado por sua avó - e que hoje guarda minha casa. Há anos que vou ao mar no dia dois de fevereiro. Ninguém mandou, ninguém pediu, ninguém sequer me sugeriu. Vou - simplesmente.

Como fui hoje. Pra rezar, pra cantar baixinho, pra render minhas homenagens.


Axé.

13 comentários:

Craudio disse...

Edu, me senti muito íntimo do texto por ter sido criado de maneira parecida e vestir a camisa da mesma religião, que é o Brasil. Digo, no entanto, que apesar de minha profundidade de conhecimento sobre a mitologia dos orixás ser parca, não me esqueço de certas passagens de quando era moleque.

Havia no nosso calendário de atividades duas datas que me faziam vibrar. Uma era a viagem à mata, em que o troço acontecia em torno de uma bela cachoeira no interior paulista. A segunda era quando descíamos para a praia, sempre em meados de fevereiro, para saudar Iemanjá.

Porém, o que eu deixo aqui não pude presenciar. Quem contou a história foi minha mãe, e o causo foi confirmado ainda por meu pai e minha madrinha (de igreja, lei e terreiro). Me foge o ano, mas chovia torrencialmente no dia da viagem ao litoral, o que fez com que as crianças não acompanhassem os mais velhos. Ainda assim, apesar do mau tempo, ninguém abriu mão de fazer suas oferendas.

A água era tanta que o povo, ao chegar na praia, não conseguia nem ao menos sair do carro, tampouco se aproximar do mar por conta das fortes ondas. Lá pelas tantas, quando a viagem parecia perdida, eis que a chuva dá uma trégua - jura minha mãe que não durou cinco minutos - e um impossível raio de sol cortou as nuvens pesadas. O mar, imediatamente, serenou.

Dizem que foi a cena mais bonita o povo cantando na areia e o barquinho se perdendo no horizonte.

Christine disse...

Nossa que lindo texto! eu como filha de Ogum e Iemanjá, amei !
Arrepios mil !
Odoya ! que Mãe Iemanjá nos proteja !

Juliana Freitas disse...

A minha primeira oferenda a Iemanjá foi numa noite de ano novo. Papai doente, com os rins cantando pra subir, e eu, que não creio em deus,sabe-se lá porque, decidi que pediria ajuda a Iemanjá pra encarar a pedreira. Comprei o barquinho, enfeitei todinho, e lá fui eu levá-lo ao mar.

Dizem que Iemaná devolve as oferendas de que não gosta, ou por conta de pedidos que não podem ser atendidos, não sei bem, porque não sou entendida do assunto. E quando eu cheguei na praia, o que tinha de flores e barcos voltando pra areia não estava no gibi. E fiquei com um medão. Se eu colocasse meu barco n'água e ele voltasse, eu ia ficar pior do que já estava.

"E aí, coloco ou não coloco o bendito na água?", pensei. pensei um pouco e resolvi arriscar. A situação tava ruim o suficiente pra não mudar muita coisa se resolvesse piorar.

Lá fui eu, "dá licença, Mãe" e o coração acelerado, o choro caindo, incontido, a água na canela, a água nos joelhos, e deixei o barco. Fechei os olhos por alguns segundos. E quando abri, não acreditei no que eu vi. Meu barquinho indo mar adentro, sem mudar de rumo, sem titubear, ligeirinho, como se nele tivesse um motor.

Mergulhei, agradeci, e chorei num alívio sem tamanho.

Mércia Ribeiro disse...

Que linda história, Edu. Arrepiei do início ao fim... E eu, que desde pequena sempre fiz questão de saudar Yemanjá (na Bahia é quase feriado o dia de hj)há cinco anos não faço isso. Sinto muitas saudades. E guardo na lembrança a visão de ver chegar no Rio Vermelho as lindas mães e filhas-de-santo nas primeiras horas da manhã, todas enfeitadas, dançando como ondas e entoando cânticos nas línguas africanas e saudando Odô Yá. Coisa linda mesmo de se ver.
Desejo a você, de verdade e sem nenhuma pretensão de querer fazer média, um dia lindo. Sorte, querido! Odô Yá!
Beijo,
Mércia

Rodrigo Cortez disse...

"Eu fui à praia do Janga
pra ver a ciranda,
com seu cirandar, cirandar.
O mar estava tão belo
e um peixe amarelo
eu vi navegar.
Não era peixe, não era,
era Yemanjá, rainha,
dançando a ciranda, ciranda,
no meio do mar."

ps: Frevo-canção inspirado nas melhores tradições pernambucanas.
Dá pra sentir o cheiro do mar...

Anônimo disse...

Edu,

Como te disse, fiquei muito emocionada com seu texto.

Fico profundamente feliz de poder participar, ainda que só um pouquinho, de passagem, da vida de alguém que consegue conviver pacificamente com as diversas crenças que fazem parte de sua criação.

Fico profundamente orgulhosa de poder conhecer alguém que respeite tanto as coisas que são tão nossas, tão do Brasil.

Que Iemanjá nos possa trazer, por meio de suas águas, toda a sorte de presentes. Que possamos dar e receber presentes dessa que à todos abraça. Òdo Íyà, Yèmòjá! Que nesse 2 de fevereiro e nos restos do dia do ano a presença dela nos seja constante!

Se você quiser amar/ Se você quiser amor/ Vem comigo à Salvador/ Para ouvir Iemanjá

Beijo grande

Fabio disse...

Textaço, Edu. E como é 2 de fevereiro, atabaques enfeitados, Pacutiguibê, Yaô! (Marku Ribas): http://www.4shared.com/audio/UfYh5Fj-/Marku_Ribas_-_Pacutiguibe_Iao.htm

Abração,
Fabio (Campinas-SP)

mari disse...

Tô em casa! Filha de Iansã, amicíssima da Padilha, que não encontro desde a morte da cunhada que a incorporava, mãe do curumim que Mãe Meninina prometeu e cumpriu, emocionada como sempre quando leio seus textos! Ai ai, como eu amo esse Brasil...

Vanessa Dantas disse...

Puta texto!

Emocionadíssima por aqui.

O fato é que me declaro agnóstica, mas não há a menor chance de eu entrar no mar sem pedir licença para Iemanjá. A conversa com a Rainha do Mar é antiga e, por vezes, extensa. Assim como marcou um dos dias mais especiais da minha vida. Vai entender...

Um beijo.

Eugenia disse...

Edu, este foi um dos textos mais bonitos do seu blog. Emocionante. Que as bênçãos da Mãe D´Água caiam sobre vc e Dani.

Patricia disse...

Tem coisas que não tem explicação... Lendo o texto, algumas imagens foram apresentadas ao meu passado. Imagens essas que não tenho memórias que representam uma vivência pessoal concreta. Vai saber o que se passa pelo infinito das águas de minha mãe... Texto incrível! Que águas cristalinas sejam o espelho de suas vivências nesse ano. Imenso abraço.

Unknown disse...

Texto inesquecível, meu camarada. Como inesquecível é a cena final do filme "Estamira". Nunca pude me esquecer de vê-la regendo as águas:

http://www.youtube.com/watch?v=rJh3ZdemuVI&feature=related

Odoyá Omi O!

Anônimo disse...

Teu texto me fez lembrar da primeira vez em que fui a uma festa de Exu. Como me emocionei com as cores, os cantos, os batuques!
Todas as pombás de Oxum vieram me cumprimentar, calorosamente. E me senti em casa, estranhamente em casa, estranhamente acolhido.