30.3.11

BRUNO RIBEIRO, CORREIO POPULAR, 30 DE MARÇO DE 2011

Tenho um tremendo orgulho da amizade que nutro - e que é, sei, recíproca - pelo brasileiro maiúsculo que é Bruno Ribeiro, jornalista carioca residente em Campinas. Um menino, se comparado aos meus quase 42 anos (que serão completados, se eu chegar lá, no próximo dia 27 de abril). Duro, quando necessário, sem jamais perder a ternura - esse é um bom resumo do que é e como age esse meu irmão.

Pois bem. Feito o brevíssimo intróito vamos ao que quero lhes dizer hoje.

Muito já se falou sobre um certo tipo, o leitor que escreve cartas para os jornais. Trata-se, geralmente, de um chato. Quase sempre sem ter o quê fazer (ou sem amigos, ou sem mulher, ou sem filhos, ou sem vícios - são fundamentais, os vícios!) regozija-se (quase goza) quando lê um de seus arrazoados publicados nos jornalões brasileiros.

Não sei se o cidadão de quem vou lhes falar hoje é parte disso, é tudo isso ou (e ele seria uma exceção) não é nada disso - faço a ressalva.

Trata-se de Renato Luis C. Gagliardi (é como ele se apresenta). Como exemplos - loas ao Google! - vejam esta carta publicada em 18 de janeiro de 2011 (na qual escorraça o Estado do Rio de Janeiro) e esta outra, publicada em 04 de fevereiro de 2011 (na qual escorraça o presidente do Corinthians). Em ambas, o que faz Renato Luis C. Gagliardi? Esperneia. Reclama. Sapateia. Aqui (loas ao Google!), brada ao STF contra a decisão do então presidente Luis Inácio Lula da Silva no sentido de conceder asilo político a Cesare Battisti. E são muitos - incontáveis! - os links indicados pelo Google que apontam para "manifestações" de Renato Luis C. Gagliardi.

Pois bem: este cidadão escreveu, recentemente, longo e-mail dirigido ao jornal Correio Popular, jornal campineiro que tem, justo em Bruno Ribeiro, um de seus mais sérios e dedicados profissionais. E como o jornal é sério, e como o Bruno é grande (e corajoso!), publicou-se hoje, na edição deste 30 de março de 2011, véspera de mais um aniversário do nefasto golpe militar que mergulhou o Brasil em mais de duas décadas de obscurantismo, arbítrio e covardia, uma bela resposta ao redator de cartas para os jornais.

Um tapa (duro!) com luva de pelica - bem à moda do meu mano Bruno Ribeiro (clicando na imagem, você lerá com perfeição o brilhante artigo).


Eu prefiro dar nome aos bois, sempre. Em nome da verdade e da precisão que me acompanha como sombra.

A página, na íntegra, pode ser lida também aqui.

Até.

28.3.11

MINHAS AVENTURAS NUM TÁXI

Pois bem: como lhes contei aqui, na sexta-feira, realizei ontem, no domingo, um de meus sonhos de infância. Assumi, às 14h30min, a direção de um táxi, oferecimento do incrível e gentilíssimo Júnior, um tremendo boa-praça (o trocadilho é de propósito, ele que é um taxista dedicado). Às 20h30min estacionei o Zafira, tinindo de novo (lavado na manhã de domingo), na garagem de meu prédio. Subi o elevador com os olhos cheio d´água e disse à minha menina, que me esperava ansiosa na poltrona da sala:

- Foi gratificante demais...

Eu, que sou preciso do início ao fim, farei - conforme o prometido - o mais amplo e abrangente relato dos fatos passados durante as 06 horas de percurso. Fiz 12 corridas, percorri diversos bairros, transportei 34 passageiros, rodei 145km gastando R$ 24,30 de gás e voltei pra casa com R$ 181,70 limpinhos no bolso (o Júnior, que não cabe em si de tanta gentileza, não me cobrou um centavo por isso).

Antes, quero lhes contar uma (apenas uma) passagem envolvendo o Júnior. E vocês me dirão se ele é ou não é o maior motorista de táxi do planeta.

Acho que foi em 2006. Eu ainda tinha um Tipo 1.6, ano 1992, quando decidi viajar, na Semana Santa, para Visconde de Mauá. Eu dirigindo, minha menina no banco do carona, e Alex Justo, um amigo nosso, no banco de trás com o Pepperoni. No começo da Via Dutra, na altura da Casa do Alemão, o carro apagou. Um mecânico chamado às pressas deu o diagnóstico: alternador pifado. Já passava das oito da noite, o que significava ser impossível solucionar o problema na hora. Liguei pra minha oficina de confiança, na Penha, e em 40 minutos estávamos sendo rebocados para lá. No trajeto, liguei pro Júnior. Pedi que fosse, se possível, nos buscar na oficina para nos levar de volta pra casa.

Chegamos na oficina e lá estava, já, o Júnior. Ao perceber que tínhamos bagagem, disse:

- Ué, vocês iam pra onde? Pra quê essas malas?

Resumo da opereta: Júnior nos deixou, passava da meia-noite, em Visconde de Mauá, na casa de nossa prima, que nos esperava. E não nos cobrou - eis o que eu queria lhes dizer - um mísero centavo pela corrida de mais de 150km, o que inclui a brutal serra que liga Penedo à cidadezinha na serra. Não quis dormir na casa ("Amanhã eu pego cedo!") e creio que isso basta para desenhar-lhe o perfil. Vamos ao domingo.

Eu sou - além de preciso - obsessivo. Minhas manhãs de domingo são iguais há sei lá quantos anos! Por isso estava às 07h30min na porta do Mundial, para as compras da semana. Do Mundial, pra feira. E da feira, fui ao Aconchego Carioca, da minha mui-amada Kátia. Lá chegando, encontrei o Russo, seu irmão, que tem uma chácara e um horto, montando o jardim da área externa do Aconchego, um canto bacana demais.


Ficamos ali - o quê?! - umas duas horas de papo. É quando gosto de ir ao Aconchego. Antes mesmo da casa abrir. Bebendo cerveja estupidamente gelada, pondo as conversas em dia com essa craque que é a Kátia, evitando, assim, enfrentar o mais que merecido sucesso que a casa alcançou, sempre cheia e com muita fila na porta.


Voltei pra casa - estava ansiosíssimo, sentia-me com 12 anos de idade a caminho do parque de diversão - guardei as compras, tomei banho, escolhi e pus a roupa ("Tá bom assim, amada?"), abri uma Cerpa Tijuca e pus-me a esperar, com a paciência de um menino de 12 anos de idade, o bom Júnior chegar (havíamos marcado às 14h).

Às 14h20min toca o interfone e eu desço, aos atropelos, de escada mesmo. Lá estavam o Júnior, Viviane, sua mulher, e a pequena Giovanna, com menos de um mês de vida. Trocamos as chaves (ele ficou com meu carro), recebi pequeno curso (como ligar e desligar o taxímetro, como emitir recibo, como perceber que o gás está acabando etc.).  


Faço a confissão: ao sentar-me à direção, pus-me a chorar. A vista turva, as mãos trêmulas, as memórias que me vinham em torrente, as pernas bambeando - "Coragem, balofo!", disse de mim para mim. E se o amor só é bom se doer a saudade só dói de forma bonita se provocada. Tomei a direção da rua São Francisco Xavier 84, e embiquei o carro diante do portão de ferro da vila onde moravam meus avós, minha bisavó, o seu Mário. Achei que se entrasse pra falar com a dona Isaurinda eu sucumbiria. Dei ré e ganhei o asfalto da Tijuca.

Primeira corrida: peguei 5 passageiros na Conde de Bonfim, quase em frente ao Morro do Borel. Todos negros, duas senhoras, um homem e duas crianças. "Vamos prum pagode no Clube Garnier, no Rocha, sabe chegar lá?". Eu sabia. Desci a Conde de Bonfim, peguei a Maracanã, Vila Isabel, a Mangueira, o viaduto de Benfica, dobrei pro Rocha e cheguei na Ana Néri. No caminho, uma das senhoras ia dizendo pros filhos prestarem atenção ao trajeto. Disse-me à certa altura:

- Os dois querem ter um táxi, como o pai deles...

Deixei-os, R$ 18,00.

A segunda corrida havia sido tratada por telefone. Fui buscar mamãe no Alto da Boa Vista.


Esperei-a na garagem do prédio e tomamos a direção da Praça da Bandeira. O valor da corrida foi de R$ 16,00. Assim que deixei mamãe avistei o sinal de um casal em frente ao Rampinha. Ele de camisa do Flamengo, nordestino, e ela vestindo um short minúsculo, mini-blusa:

- Deixa a gente na passarela da Rocinha, moço? Pelo Rebouças, por favor.

Essa corrida foi hilariante: o sujeito foi pelo caminho contando que na quarta-feira também começa a trabalhar na praça (mas atentem para o detalhe):

- Tem uns PMs lá no morro que alugam táxis apreendidos pelo DETRO, por trinta reais, da meia-noite às seis. Dá pra ganhar algum, e eles dão cobertura pra qualquer problema.

Atravesssei o Rebouças, peguei a Lagoa-Barra, o túnel Zuzu Angel e deixei-os na passarela, recebendo R$ 26,00 pela corrida.

Parei num posto mais à frente para fumar um cigarro e decidir o que fazer, já que em São Conrado ninguém toma táxi no meio da rua. 


Fiz o retorno, caí no Leblon. Em frente ao Jobi peguei um casal com um casal de filhos:

- Praça General Osório, por favor, em frente ao Carretão.

No caminho, a família discutia sobre um apartamento que provavelmente haviam acabado de visitar. O pai dizia que estava bom o preço pedido, de 2 milhões de reais. O menino reclamou a falta de um cômodo para um escritório. A mulher sugeriu que fizessem uma contraproposta de 1,750 milhão. A corrida foi uma reta, curta, custou R$ 8,80 e o homem deu-me uma nota de R$ 10,00 dispensando o troco.

Descobri que as corridas curtas são infinitamente mais vantajosas que as mais longas. Vão tomando nota!

Assim que saí da General Osório e entrei em Copacabana, um casal de gaúchos entrou no carro. Iam pro Leme, pra um hotel. Uma vez mais, uma única reta. Corrida de R$11,00 - deu dez e pouco, fiquei com o troco. Quando dobrei a Gustavo Sampaio e entrei na Atlântica, três mulheres, uma delas em cadeira de rodas.

- Graças a Deus, meu filho! Com essa cadeira, só mesmo carro grande. Pode ser?

Ajudei a pôr a cadeira no porta-malas e tomei a direção do Humaitá, pouco depois da Casa de Espanha. Cruzei a Real Grandeza, corrida curta também, R$ 15,00. Deu treze e pouco, a senhora dispensou o troco e só faltou me beijar por ter ajudado com a cadeira de rodas. Entrei no Rebouças, desci o Cosme Velho. Em frente à estação do Corcovado, um casal. Americanos. Com a língua enrolada, disseram:

- Por favor, Sushi Leblon. Do you know?

- Yes! - sou um poliglota.

Deixei-os na Dias Ferreira em frente ao restaurante, corrida de R$ 29,00. Durante o trajeto o homem tentou me vender um iPhone 3GS. Exibi o meu e agradeci. Eu estava - incontestavelmente - com sorte. No final da Dias Ferreira, em frente a um apart-hotel, um casal de paulistas fez sinal. Estavam indo parta o Santos Dumont.

- O senhor sabe se o Aterro já está aberto?

- Já, sim senhor.

- Vamos por lá, então. E pegue a Atlântica, por favor.

Foi a corrida mais longa, custou R$ 33,00 ao casal. No trajeto eles foram me perguntando se o trânsito era sempre daquele jeito no Rio, esculhambaram o trânsito de São Paulo, me pediram que mostrasse o hotel no qual hospedou-se o Obama. Saí do aeroporto e fui pro Centro. Inacreditavelmente cinco jovens fizeram sinal em frente à Maison de France. Três ingleses e duas moças francesas. Uma delas disse:

- Glórrrrria, porrrrr favorrrrr.

Corridinha curta, R$ 9,00. Tudo pago em moeda!

Era hora de abastecer. R$ 24,30 por pouco mais de 15 metros cúbicos de GNV, num posto da rua do Matoso. Na esquina da Matoso com a Haddock Lobo peguei um rapaz, 15 anos no máximo:

- Pro Tijuca Tênis Clube!

- Tem jogo lá? - perguntei.

- Nada! Tem é festa. Mulher pacas!

Perguntou se eu era casado e mandou uma hilariante:

- Pô, que azar! Até tu, que é tio, pode ser dar bem lá. A mulherada tá louca, tio! Louca!

A corrida custou R$ 7,00. Desci a Conde de Bonfim. Na esquina da rua do Bispo com a Haddock Lobo, cinco jovens. Dois rapazes e três meninas (belíssimas, diga-se).

- Shopping Tijuca, tio!

Mais R$ 10,00. Na porta do próprio shopping, mãe e filha pra Santa Alexandrina, meiúca entre o Rio Comprido e a Tijuca.

Fui ouvindo elogios às UPPs, às melhores condições de segurança do bairro, deixei mãe e filha na porta de casa por R$ 12,00.

Dirigir um táxi é uma cachaça. Uma adrenalina permanente (vem mais passageiro?, corrida curta?, corrida longa?) e decidir a hora de parar é bastante difícil. Constatações evidentes nessa primeira experiência: todos foram muito gentis comigo, todos. Todos cumprimentaram ao entrar e sair do táxi. Todos arredondaram para cima o valor da corrida. Poucos puxaram conversa, e senti que não é exatamente oportuno o motorista fazê-lo.

Ontem mesmo, durante a narrativa do dia pelo twitter, meu mano Bruno Ribeiro, de Campinas, vaticinou: "Se eu conheço o Edu, ele vai querer repetir a experiência".

Ele estava certíssimo. Se tudo der certo e se assim os deuses permitirem no dia 10 de abril, dia do batizado da filha do Júnior, pela manhã, assumo a direção do táxi mais uma vez.

E pra fechar: os quase duzentos reais que faturei, ontem, não pagam, nem de perto, o prazer, ainda que tardio, da realização de um sonho de infância.

Até. 

25.3.11

UM SONHO DE INFÂNCIA REALIZADO

Em agosto de 2008, durante um de meus tantos arremessos ao passado, aqui, falei sobre a dona Isaurinda e seu marido, o seu Mário, já falecido. O seu Mário, descendente de italianos, dividia-se entre a função de taxista (função que, em priscas eras, era exercida quase que exclusivamente por portugueses) e a de jornaleiro (função até hoje exercida por italianos). Tinha um TL (e eu posso jurar que era vinho e não amarelo, como os táxis de hoje) e sua banca ficava na Conde de Bonfim, entre a Praça Saens Peña e o Largo da Segunda-Feira, na Tijuca. Era pai de quatro filhos e morava na mesma casa em que até hoje reside a viúva, dona Isaurinda, que fica numa vila na rua São Francisco Xavier 84, onde moravam também, no tempo de minha infância, meus avós e minha bisavó. E faço a primeira confissão: de vez em quando saio vagando a pé e estaco diante do portão da vila, porque até hoje está plantado ali o menino de calças curtas e camisas listradas que insiste em viver dentro de mim. Abro o portão que tantas vezes me viu indo e vindo e vou tomar a benção da dona Isaurinda.

Feito o intróito, vamos ao que quero lhes dizer: eu tinha verdadeiro fascínio pela rotina do seu Mário, um carcamano torcedor do Fluminense. Ele ocupava, naquela vila (e vilas são pequenas cidades), uma posição importante, quase que de patriarca da molecada. Além disso, provia a casa de meus avós de toda a sorte de revistas, semana após semana. Voltava, à noitinha, chegando da banca de jornal que mantinha na Conde de Bonfim, trazendo jornais e revistas - e para a molecada, sempre, toda a sorte de revistas de sacanagem (que naquela época mostravam um pedaço do peito, um pedaço da bunda e olhe lá!). E mais fascínio, ainda, eu tinha pelo táxi. Um TL, sempre tinindo, e o taxímetro - hoje vendido a peso de ouro nas feiras de antigüidades - Capelinha no painel.

Diversas vezes o seu Mário deixou a garotada - eu, inclusive - atravessar a vila dirigindo seu táxi. Ele ficava no banco do carona e dava a marcha-ré para que outro, e depois outro, e depois outro, experimentasse o prazer de dirigir.   


Não sei quando foi, em que dia, em que momento - por mais que eu tenha me esforçado antes de sentar-me aqui para lhes dizer isso - estacou-se dentro de mim o sonho de ter um táxi - ou um lotação, que era como minha bisavó se referia a táxi até morrer, em 1982. Era a profissão que eu almejava ter. E vamos a mais uma confissão: papai, um homem que anda com centenas de frases prontas no bolso da calça, sempre nos dizia, a mim e a meus irmãos, quando éramos pequenos (diz até hoje, diga-se a verdade):

- Quando eu era da idade de vocês eu queria ser caminhoneiro...

Vá entender - me permitam fazer a blague - essa obsessão rodoviária da família!

Eis então que domingo, depois de amanhã, mais de 30 anos depois, realizarei, ainda que por um dia, o velho sonho da infância. Graças ao Junior, o melhor, mais competente e prestativo motorista de táxi do mundo, queridíssimo meu, estarei a bordo de um Zafira, rasgando a cidade à espera de mãos e braços aflitos em busca de condução.

Mas o tempo se dobra, meus poucos mas fiéis leitores. Embarco nessa, a bem da verdade, não em busca de mãos e braços aflitos à espera de uma condução.

Sentar-me-ei no táxi - e antevejo uma cena de novela mexicana... - vinho (a tal pátina do tempo, como nos ensinou Blanc, transformará o amarelo em vinho) em busca do menino de calças curtas e camisas listradas, do Capelinha no painel no lugar dos taxímetros de hoje, em busca de meus avós, de minha bisavó, do seu Mário, da minha infância, repositório imortal e permanente de meus afetos duradouros e perenes.

Até.

24.3.11

TOCOLOGIA NA TIJUCA

(dedicado a Benjamin D´Angelo Carneiro Simas)

Eis-me aqui, de volta, depois de dez dias de afastamento - necessários em razão da lufa-lufa do cotidiano (notem, pelo uso da palavra "lufa-lufa", que voltei ainda mais velho, mais antigo, mais múmia). Quero lhes contar hoje sobre a experiência que vivi no último domingo, 20 de março, dentro de minha própria casa. E como sou preciso do início ao fim farei minuciosa exposição dos fatos.

Estava eu, no sábado, a caminho da casa de meu irmão para um churrasco para o qual havíamos sido convidados, eu e minha menina. Estrilou meu celular. Era uma mensagem SMS. O autor? Luiz Antonio Simas, meu irmão, brasileiro máximo, tijucano de escol:

"Alguma boa para hoje?" - foi sua mensagem, curta e direta.

Disquei para ele.

Candinha, mulher do caboclo, acordara disposta e a fim de um encontro, um almoço, algo assim. Vamos a uma breve pausa para construção do cenário fático.

Candinha estava, já no sábado, com o ciclo da gestação completo. O que significa dizer que, a qualquer momento, poderia dar à luz o menino Benjamin. Voltemos.

Contei sobre o churrasco e a impossibilidade do encontro naquele dia. Atendendo sugestão de minha menina, excitadíssima com a gravidez da amiga, fiz o convite:

- Que tal vocês almoçarem lá em casa amanhã? Faço a feira cedo, compro camarões...

Ele me interrompeu:

- Camarões?! Claro! Claro! A que horas?

E marcamos. O Simas tem, pelo camarão, uma atração dionisíaca. É o agudo oposto, por exemplo, de meu compadre Leonardo Boechat, que sofre de uma alergia terrível a crustáceos, frutos-do-mar e outros bichos.

Fiz a feira cedíssimo no domingo. Comprei dois quilos de camarão, uma massa italiana, bastante alho, vinho branco português e às 13h30min - a hora exata marcada, tijucano é implacável! - explodiu a campainha.

Entram pela porta da sala (aberta pela primeira vez desde que moramos lá, há 12 anos, todos entram pela porta da cozinha por questões de praticidade, foi uma singela homanegem sugerida pela minha garota) Luiz Antonio Simas e Candinha, redonda, plena, deslumbrante de tão bonita (a maternidade ilumina a mãe desde a concepção). Houve, naquele momento, uma festa. Minha menina emocionada com a presença deles e antes mesmo de terminados os cumprimentos percebi o gesto de Luiz Antonio que, com o polegar da mão direita num vai-e-vem em direção à própria boca, implorava por algo para beber.

Até que recebemos relativamente pouco, mas temos o hábito de oferecer faustos ágapes a nossos convidados. Deixei gelando doze garrafas de Cerpa Tijuca, ouro líquido, e o Simas não escondia a ansiedade. As moças tricotando na sala e eu fiz a pergunta de praxe para o momento:

- Ansioso, velho?

Deu-se o seguinte: Luiz Antonio pôs metade da garrafa dentro da boca, bebeu tudo num só gole, pediu outra e disse:

- Evidente! Acho que estourou a bolsa! Estourou a bolsa!

- Estourou?

- Arrã.

Candinha, atenta, da sala:

- Luiz Antonio, calma.

Estava estranho, o professor.

Como uma piorra, zanzava entre a cozinha e a sala. Diversas vezes dirigiu-se à Candinha:

- Liga pro doutor! Liga! - e dizia isso gemendo, coçando a cabeça árida de pelos, roendo as unhas.

A certa altura Candinha disse um simples "vou ao banheiro". Parecia ter deflagrado uma guerra. Foi trancar-se no toalete e Luiz Antonio começar:

- E aí, querida?! Tudo bem?

Luiz Antonio estava de quatro farejando por baixo da porta:

- Isso não é cheiro de xixi, Cândida! Abre essa porta!

Vem a Candinha pelo corredor, Luiz Antonio a seguindo de joelhos depois de cheirar o vaso sanitário com o apuro de um pastor-alemão. Senta-se na melhor poltrona da casa, alisa a barriga e diz:

- Tudo em ordem...

Servi o almoço.

Senti algo respingando em meus pés. Luiz Antonio estava urinando, de nervoso. Fez-se uma poça sob a mesa, meu vira-latas, honrando a raça, lambia aquilo com intenso prazer. Simas mastigava os camarões chorando. E dizia, de boca cheia:

- Liga pro doutor, liga pro doutor... Desculpe a mijada, Edu, mas tá foda...

Terminado o almoço, ligaram pro doutor. Enquanto Candinha falava, docemente, ao telefone, Luiz Antonio rezava, de joelhos e mãos postas, diante da mulher. Ela desligou, pediu um copo d´água e ouviu os apelos do marido:

- E aí, meu amor... O que ele disse?

- Recomendou que nós fôssemos agora pro hosp...

Só voltei a ter notícias a 01h37min da madruga de segunda-feira, por telefone. Foi quando veio ao mundo o primogênito de Luiz Antonio Simas. Ontem, no meio da tarde, nova mensagem no celular:

"Benjamin já se encontra em terras tijucanas. No caminho, demonstrou especial interesse pela região da Praça da Bandeira"

Minutos depois - e eu infelizmente não pude atender ao convite - ligou-me o pai, o felizardo, não cabendo em si de tanta euforia.

Mãe e filho em casa, e o pai - imerso na euforia mágica da paternidade que eu não pude experimentar - no Salete, comprando o almoço e brindando à vida com um chope bem tirado.

Até.

14.3.11

10.3.11

DO DOSADOR - BALANÇO DO CARNAVAL 2011

* Eis que chegamos ao final de mais um Carnaval. Quero, pois, dose por dose, fazer o balanço do que vi e do que ouvi durante o tríduo momesco. Quatro dias em Cabo Frio - da manhã de sábado à manhã de terça-feira - atento às notícias (vi, do começo ao fim, todos os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro) me permitem, penso eu, falar com alguma propriedade sobre tudo. Vamos por partes;

* uma vez mais a Rede Globo estraçalhou, de forma abjeta, o prazer do telespectador, chamado por uma repetitiva Ana Paula Araújo (apresentadora do RJ TV) de "pessoal de casa". Poucas coisas são mais simples do que transmitir o desfile das Escolas de Samba pela televisão: uma meia-dúzia de câmeras espalhadas ao longo da avenida, um único apresentador para dizer o mais-simples e um ou dois comentaristas entendedores do riscado para comentários entre uma escola e outra. E o que a Globo nos ofereceu? Na "ancoragem" - termo estúpido que eles usaram diversas vezes - Luis Roberto e Glenda Kozlowski, egressos do mundo do futebol. Ele, narrando os desfiles como quem narra uma partida de futebol. Ela, que em seu twitter pessoal mandou um bloco de rua do Jardim Botânico pra PQP - está aqui, pra quem duvidar, prova efetiva do quanto gosta de carnaval, a moça - deu um show de histeria durante todo o desfile, tanto o de domingo quanto o de segunda-feira. Ria, gargalhava, dava gritinhos, fazia ohs e ahs capazes de irritar, profundamente, o telespectador. E as imagens? Tenham em mente uma coisa: os carnavalescos pensam um enredo e os colocam na avenida numa determinada ordem lógica a fim de que se tornem compreensíveis para quem assiste. O que faz a abjeta Rede Globo? Exibe tudo na ordem que a ela convém. Daí você é obrigado a ver o terceiro carro antes do primeiro porque naquele está um astro da emissora. Outro troço irritante, de dar nojo: Luis Roberto e Glenda Kozlowski conversavam o tempo inteiro e foi simplesmente impossível para quem assistia de casa ouvir o canto da escola, a bateria da escola. Mais grave: tirando a Mangueira e a Beija-Flor, todas as outras escolas não foram mostradas durante um dos momentos cruciais, o grito de guerra, o canto que dá início ao desfile. Eu, salgueirense de quatro costados, não pude ver a saída da escola... Graças à transmissão da Rede Globo. Tem mais, tem mais: no chamado "estúdio Globoleza", Ana Paula Araújo comandava o quadro de comentaristas. Quais comentaristas? Chico Pinheiro (sabe bastante, falou pouquíssimo), Teresa Cristina (triste ver a cantora fazendo aquele papel modorrento durante os desfiles), Haroldo Costa (sabe muito, falou pouquíssimo) e, como destaques negativos, Fernanda Abreu (que entende tanto de samba quanto eu, de física quântica) e Hélio de La Peña (que não conseguiu acertar uma só piada). Vai daí que os desfiles eram interrompidos para que ouvíssemos as besteiras que esses caras diziam... Uma outra repórter, Mariana Gross, destratava o povo no Setor 1 do Sambódromo, sempre com intervenções desnecessárias. Renata Capucci, outra repórter que trabalhava na avenida, disse, pelo twitter - vejam aqui - que um componente da Unidos da Tijuca havia caído do alto de um carro alegórico. O telespectador soube? Não, é evidente. E se eu fosse ficar aqui listando as barbaridades da transmissão, não faria outra coisa pelas próximas 24 horas;

* ah, sim, outra barbaridade. Luis Roberto e Glenda Kozlowski interrompiam as transmissões, muitas vezes a cada escola, incentivando o telespectador a enviar, por SMS, mensagens para a emissora (nunca anunciando o custo da ligação, é claro). E éramos obrigados a ler, na tela (com direito a narração nojenta dos dois), as babaquices que os babacas mandavam pra lá. Além disso, fomos obrigados a assistir vídeos enviados por idiotas do exterior. Pergunto eu a vocês: a quem interessa saber que o babaca A está assistindo ao desfile diretamente do Alasca? Ou que o babaca B está super feliz em Portugal vendo o desfile pela Globo Internacional? Tudo um repugnante e agudo nojo. A Globo, que trata futebol e Carnaval como entretenimento, que detém o monopólio dessas transmissões, presta - o que não é nenhuma novidade - um desserviço ao amante do futebol e do Carnaval. E faz - também não é novidade - um jornalismo abaixo da crítica;

* a prefeitura exibe, com orgulho, os quase 700 detidos durante o Carnaval por conta de xixi fora dos banheiros químicos disponibilizados pelo Poder Público. Ontem ouvi, na CBN, entrevista concedida por Alex Costa, Secretário Municipal de Ordem Pública, sobre o tema. Devo dizer, estarrecido, que esse sujeito não seria contratado por mim nem para engraxar meus sapatos. Não respondeu sequer a uma pergunta durante a entrevista. Falou muito, não disse nada. Usou, durante a entrevista (que durou pouco mais de 5min), centenas de vezes a palavra "questão". Era um tal de "a questão da urina", "a questão da educação da população", a "questão dos banheiros químicos", "a questão da fiscalização", por aí. Soquei o volante do carro de tanto ódio. A Prefeitura, que nada em dinheiro (graças à parceria com o Governo do Estado, com o Governo Federal, e no Carnaval graças à parceria com uma marca de cerveja), que o desvia diante do nariz do cidadão incapaz de uma reação à altura, agora deu de punir, punir, punir. O incompetente disse que está estudando a possibilidade de, no ano que vem, multar os mijões, que é necessário, sim, haver paciência para esperar uma fila de meia-hora diante dos banheiros, e que não mais autorizará o desfile dos blocos que não cumpriram as regras estabelecidas pela Prefeitura. E a Prefeitura cumpre as mínimas regras de governar com decência a cidade? Haja paciência;

* vamos ao resultado da apuração aqui no Rio de Janeiro. Sabemos todos que há, sempre, armação para determinada escola e chororô por parte dos perdedores. O que quero lhes dizer é que foi simplesmente vergonhoso ver uma nota 9 dada à bateria da Estação Primeira de Mangueira. O que fez a bateria da Mangueira durante o desfile (veja um trecho aqui) foi um absurdo de tanta boniteza. Foi a única escola capaz de me fazer chorar diante da tela (chorei outras vezes, mas de raiva), mas isso não vem ao caso. Anseio, muito, para ver a justificativa que a besta-quadrada deu, no boletim de apuração, para explicar tanta obtusidade;

* foi muito bacana ver a Beth Carvalho de volta à Mangueira. Sentadinha ao lado de Sérgio Cabral, o pai, foi outra que fez valer a pena as duas noites viradas diante da televisão;

* os desfiles da Portela, da União da Ilha e da Grande Rio mostraram o erro que foi a LIESA decidir por não avaliá-las. O incêndio, embora trágico, faz parte do jogo. As três escolas mostraram capacidade de recuperação e podiam, principalmente a União da Ilha, fazer bonito na classificação final;

* só vi uma vantagem na vitória da Beija-Flor, que talvez tenha feito seu mais feio desfile de todos os tempos. A derrota da Unidos da Tijuca e do queridinho da Rede Globo, Paulo Barros. Se vencesse, estaria assinado o atestado de óbito da brasilidade do Carnaval das Escolas de Samba. Todas as alas da Tijuca - todas! - eram coreografadas (nem sombra de samba). Os carros, fazendo alusão ao cinema americano. Um lixo, um absoluto e desprezível lixo, como o cu do King-Kong do Salgueiro piscando.

Acho que era isso o que eu queria lhes dizer.

Até.

3.3.11

CARNAVAL - EXORTAÇÃO À MORTE POR 3 DIAS

Quando o Salgueiro pisar na avenida na segunda-feira de Carnaval, por volta das 22h, estarei, como nos anos anteriores, e desde que me entendo por gente, diante da tela da TV assistindo, comovido, passar a vermelho-e-branco da minha aldeia, a vermelho-e-branco da minha Tijuca. Eu, devoto confesso da anti-festa - e já explico o porquê do "anti-festa" - pela primeira vez em muitos anos estarei quieto, no meu canto, durante os dias em que a magnífica esbórnia varre o Brasil de norte a sul, e varre meu Rio de Janeiro principalmente, centro nervoso da festa de Momo.

Há de ser assim, é preciso que seja assim. Os tempos pedem e meus deuses clamam, dentro de mim, por esse afastamento. Eis aí a primeira prova efetiva, que experimento na carne e na alma, de que o Carnaval é inversão, precipuamente é inversão. São os deuses, nesse momento, a quem tanto tenho me dirigido, que me pedem o afastamento. E eu me afastarei, que eu não sou besta de desobedecer.

Nasci em 69, filho de mãe salgueirense até a alma, como lhes contei aqui, e "o que importa é que eu sempre soube que mamãe, quando menina, morando na Rua dos Araújos, na Tijuca, evidentemente, teve uma babá, negra, que desfilava na ala das baianas da Acadêmicos do Salgueiro. Tem, ainda hoje, minha mãe, memórias vivíssimas da tal babá. Eu, quando menino, morando na Rua São Francisco Xavier, na Tijuca, evidentemente, lembro-me, com a mesmíssima nitidez com que minha mãe lembra da negra baiana, de assistir pela TV aos longos desfiles das escolas de samba, sempre ao lado de minha mãe, e lembro-me de vê-la sempre chorando, emocionada, quando a vermelho e branco pisava a passarela. Lembro-me, mais nitidamente ainda - sinto as mesmas dores agora - de suas unhas cravadas na palma da minha mão, soluçando, comovidíssima com aquilo tudo. Talvez visse, na telinha da TV, sua babá. Talvez fosse uma quimera e a negra já estivesse morta, talvez fosse saudade, não sei, nunca perguntei nada. Eu atribuía tudo ao amor pela escola.".

Nesse mesmo texto, de dezembro de 2006, escrevi que "quando o Salgueiro pisar a avenida em 2007, evocando as Candaces, mulheres guerreiras, cantando um samba que se alinha à tradição dos mais belos sambas do Salgueiro - saudando os orixás, a África, os negros e suas heranças que encontram na vermelho e branco o mais bonito terreiro - eu vou ter, de novo, calças curtas, camisa listrada, pouquíssimos anos, e chorar de saudade - sabe-se lá - da babá de minha mãe.".

Ocorre que agora, meus poucos mas fiéis leitores, há uma necessidade mais urgente. Preciso, e como preciso!, morrer na madrugada do sábado para renascer, renovado, na quarta-feira de cinzas. E se meus deuses têm me feito tantos apelos (a tal primeira inversão), é um apelo público, desavergonhado, sem resquício de qualquer pudor, que quero fazer aos meus mais chegados, eles que entendem e entenderão a razão pela qual preciso desse afastamento, desse arremesso em direção ao passado e ao invisível.

Eu já vivi, em 2007, a experiência da morte, por amor a um amigo, a um irmão. Corria o ano de 2007, véspera do Carnaval, quando anunciei, de pé, na livraria Folha Seca, na sexta-feira, véspera do desfile do Bola Preta, diante de minha menina e de amigos meus que acompanharam, assombrados, o anúncio:

"- Morro agora, amigos meus, morro agora, amor da minha vida, para somente renascer amanhã à tarde, depois do desfile do Bola Preta, eis que cederei meu corpo, que não mais me pertencerá a partir da agora, para meu irmão Fernando José Szegeri, que desfilará, assim, pela décima nona vez, pelo portentoso Cordão!"

E fui - vejam com seus próprio olhos! - Fernando Szegeri durante o sábado de Carnaval, aqui e aqui, ele que não pôde vir ao Rio por conta do nascimento do filho.

É chegada, pois, a hora de mais uma subversão da lógica e da ordem, é chegada a hora da imortal vitória da ilusão, apud Aldir Blanc.

Permitam-me o desabafo, a prece dita aos prantos, a exortação feita em ritmo de samba bem marcado pelo surdo de marcação imaginário que há de me ecoar nos ouvidos, durante três dias, como o coração acelerado de um feto à espera da luz.

Afastar-me-ei das ruas do meu Rio mas hei de estar, em algum momento, ao lado de meu mano de fé, Fernando Szegeri, de quem já fui cavalo, nas ladeiras de Olinda, nas ruas do Recife, ao som da triste melodia de um frevo qualquer. Chame por mim, mano!, uma vez que seja. Hei de estar, durante um minuto que seja, bebendo com outro de fé, Luiz Antonio Simas, num bloco qualquer que há de sair no Rio de Janeiro, abraçado à Candinha e afagando a barriga que guarda o menino por vir. Chame por mim, mano, uma vez que seja! Hei de estar com Julio Vellozo, com Arthur Tirone, meu mano Favela, com o Felipinho, com meu do peito, Bruno Ribeiro: ergam um brinde à minha ausência-morte, chamem por mim, amigos meus, uma vez que seja! Hei de estar segurando Helena no colo, uma vez que seja, vendo passar o arlequim de mãos dadas com a colombina - chame por mim, Leo Boechat, uma vez que seja! Hei de estar com minha comadre, Mariana Blanc, tendo a Milena por perto, minha borboleta. Chame por mim, comadre, uma vez que seja! Hei de estar com a Betinha na Rio Branco, hei de estar com o Flavinho e hei de ver o Felipe tonto de rir diante de uma guerra de confetes - chamem por mim, queridos meus, uma vez que seja! Hei de estar de porre, trôpego, esbarrando na minha irmãzinha, a Marcela, que há de ser mais Manguaça que nunca durante o tríduo momesco, e hei de receber o abraço da Sonia ao chegar em casa pela manhã, trocando as pernas. Chamem por mim, minhas amadas, uma vez que seja! Hei de estar nos fios do talabarte junto do Buba, no coração da bateria da Vila Isabel, e hei de estar também na cabeça da baqueta que vai surrar o couro do surdo, serei eu, também, gritando. Chame por mim, malandro, durante o desfile! Hei de estar brincando com Rosa e com Chico antes de sair pra rua, hei de estar - hei de estar! - com minha comadre Stefania, misturado à turba de um bloco qualquer - chame por mim, maninha, uma vez que seja! Hei de estar vendo Iara, moça bonita de olhos negros como jabuticaba, afilhada que amo tanto, e hei de estar nas mãos e na voz da Railídia, que a Railídia há de cantar durante o Carnaval. Gritem por mim, queridas, gritem que eu me farei presente! Hei de estar ao lado de minha anã preferida, Flavinha Calé, e ao lado de Fernando Borgonovi, bebendo industrialmente e dormindo nas sarjetas da Tijuca. Chamem por mim, queridos, uma vez que seja! Hei de estar bordejando pela cidade com Fabinho Calé, serão seus os meus olhos a cada flerte furtivo durante a festa. Chame por mim, caboclo, chame que estarei presente. Uma vez que seja!

E quero estar, como quero e preciso estar!, experimentando de novo - eis o milagre da fé foliona - no instante exato em que o Salgueiro pisar na avenida, o calor do útero de minha mãe, longe das agruras e das dores do mundo, pronto pra apoteose da vida quando a escola acabar de atravessar, gloriosa, a avenida.

Em 69, quando nasci, pouco mais de dois meses antes de eu vir ao mundo - e eu cheguei pela Tijuca, é claro! - o Salgueiro desfilou cantando a Bahia de todos os deuses. Tenho, vá entender, absoluta certeza de que ouvi, ao vivo, a vermelho-e-branco desfilando naquele ano.

São os milagres do Carnaval. E quem há de duvidar deles?




Até.