27.4.11

27 DE ABRIL, O QUADRAGÉSIMO SEGUNDO

No exato instante em que este texto for publicado - zero hora do dia 27 de abril de 2011 - estarei a poucas horas de completar exatos 42 anos de vida, eis que vim ao mundo numa tarde de domingo, exatamente às 15h32min, no hospital da Ordem Terceira da Penitência, na Tijuca - onde mais? - único lugar possível para um sujeito como eu (e onde hei de morrer, que eu não sou maluco de morrer longe daqui). Estarei, como há tantos abris, logo pela manhã, passando a vida como num rolo de filme numa tentativa insana de viver de novo cada minuto desses pouco mais de 22 milhões de minutos vividos até então. Coisa pacas...

Eu, que sinto-me mais que nunca uma múmia, velho, caquético, tenho no rosto bem mais que a marca de meus 42 anos. Tenho as marcas do sofrimento que enfrenta todo aquele que está vivo, que a vida não é de brincadeira e prega cada peça que vou lhes contar... Barba branca, dores nas costas, sístoles e diástoles assustadoras, ptose num dos olhos, por aí.

E tenho como um de meus vícios (sou um homem que cultiva os próprios vícios dentro de uma estufa imaginária) fazer um balanço, ano após ano, pra ver como anda a maré.

E eu não posso reclamar, em absoluto, do que tenho hoje dentro do balaio de meus 42 anos. Tenho a meu lado, há quase 12 anos, a mulher que me ensinou a sorrir, ainda que a roda-viva da vida nos tenha lançado um tremendo desafio no colo - mas eu sou da Tijuca, pô!, e faço diariamente, assim que chego do trabalho, uma sessão de embaixadinhas, trazendo o desafio nos pés, para fazê-la sorrir diante de mim. E quando ela sorri não há sofrimento capaz de me tirar o humor. Tenho meus pais vivos, e papai e mamãe são os verdadeiros sustentáculos desse edifício que ergui com meu nome. Digo sempre, em oração silenciosa, de mim para mim, que se eu não fui (e não sou) o filho que eles esperavam ao menos honrei (e honro, diariamente) as maiores e mais graves lições que deles recebi.

Vai daí que sou - sei - um sujeito difícil. Mas muito dessa dificuldade (ou do que chamam "dificuldade") vem da minha postura absolutamente incorruptível que não me permite transigir com o que considero meia-palavra, meia-boca, traição, mentira, sordidez, canalhice, calhordice e falta de caráter. Esta, uma das razões pelas quais angario gente à minha volta com a mesma facilidade com que angario desafetos, e um homem sem desafetos, sem inimigos, é um projeto fracassado de homem. Tenho orgulho de cada um deles, de meus amigos e de meus desafetos, que são como medalhas que trago estampadas no peito como sinal de que acerto no trilhar do caminho que desenhei pra mim.

Não tenho mais meus bisavós vivos, nem vivos estão meus avós, mas só um tolo afirmaria, com uma frieza que eu jamais conheci, que eles não estão vivos e ao meu lado. Tenho meus irmãos, e de sangue são dois. Tenho meus irmãos, e de fé são muitos - com a graça dos deuses a quem agradeço e louvo todos os dias. Tenho uma exército de moças, queridas minhas, minhas comadres, minhas afilhadas, irmãs que ganhei durante a trilha, a me embelezar o caminho. Não tenho, de fato, do quê me queixar.

Há uma - e apenas uma - queixa, apenas (antes que meus detratores empunhem as armas, foi de propósito esse repetir do "apenas"). Sinto cada vez mais distante o moleque no colo da mãe, no curso de 1969. Eu tinha, ali, os olhos cheios de uma inocência que se esvaiu com o passar dos anos. Lembro-me de que certa vez, não lembro quando, escreveu-me o bom Szegeri, um de meus orixás vivos. Tendo visto uma foto minha, escreveu-me pra dizer que havia visto, nos meus olhos, o oco onde antes havia o brilho, a dor onde antes reluzia alegria. Não estava de todo errado, meu irmão. Talvez eu sofra demais por tentar manter aceso esse brilho, por tentar suprir a ausência de um filho, por tentar dizer sim, todos os dias, quando a vida me acena com não.

Mas eu sou tijucano, pombas!, e aprendi nas ruas, no asfalto da vila na qual fui criado, a dobrar o tempo e a viver de arremessos capazes de me fazer ganhar o axé necessário pra seguir de cabeça erguida, queixo (que eu não tenho) pra frente e de braços abertos. Aos que vira-e-mexe me dizem "pare de comprar briga, Edu!", respondo sem medo do erro que é disso, também, que me alimento. Se eu preciso de paz, faço a guerra pra que tenha melhor sabor a paz quando chegar. Se eu preciso de luz, armo o breu absoluto pra que uma nesga de claridade me sirva como guia.

É esse movimento que mantém vivo. Há 42 anos. Escolhi, por ser feliz assim, viver na encruzilhada.


Até.

25.4.11

O CONTRATO DO COMIDA DI BUTECO

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19.4.11

PAPAI TAMBÉM É FÓBICO

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ISSO É COMIDA DI BUTECO?

Recebi, ontem à noite, e-mail de uma de minhas poucas mas fiéis leitoras - de Belo Horizonte. Trata-se de uma moça que, à minha moda, revolta-se com a invasão de sua cidade por parte da horda de consumidores e seguidores da moda imposta pela mídia brasileira por conta do nefasto, nocivo e pernicioso festival Comida di Buteco, o festival da Jabalândia (leiam aqui).

E eu, que já havia inaugurado a série através da qual pretendo exibir as criações grotescas dos bares e botequins que se rendem às garras do festival aqui, volto à carga hoje pondo no balcão virtual o prato concorrente no festival em Belo Horizonte, nascedouro do troço, do Bar da Cida.

Eu, que não conheço o Bar da Cida e tampouco a própria Cida, falarei muito à vontade sobre o Floramar, que eles, organizadores, chamam de tira-gosto. O Floramar é, a foto é clara, uma gororoba de tremendo mau gosto que mais se assemelha a um outdoor disfarçado de tira-gosto. 


Trata-se de "carne de sereno, mandioca, cebola, alho, suco de siriguela, cogumelo fatiado, maionese, amido de milho, vinho, azeite, couve-flor, pimenta biquinho e cheiro verde". Perderam o fôlego ou vomitaram lendo os ingredientes?

A foto - ah, a Jabalândia... - exibe a marca Hellmann´s (a maionese é uma das patrocinadoras da coisa) e a cerveja Bohemia, há muitos anos intragável.

Como os meus botequins de fé servem pratos que se resumem a uma palavra, duas no máximo (torresmo, pele, ovo colorido, carne-seca, lingüiça, por aí...), acho inacreditável a imposição do festival. Daí temos, além desse horror exposto hoje, "farofa de feijão andu com bacon puxado na manteiga de garrafa" (puxado?), "ossobuco desmanchado e carne de sol perfumados com limão siciliano em cama de angu e nacos de requeijão de raspa" (desmanchado?, perfumados?, cama?, nacos?), "lombo assado na maionese" (na maionese?), "surubim em cubos" (em cubos?) e um bolinho de carne-de-sol "finalizado com maionese" (finalizado com maionese?).

Se no Bar do Marreco, no Almara, no Bar do Chico, no Pink, no Columbinha, em qualquer outro do mesmo nível (todos portentosos butecos tijucanos), eu sonhar em pedir um desses troços no balcão, serei olhado com uma desconfiança irreversível.

Diante disso, resta-me dizer: fujam dos bares que participarão do festival, evitem esbarrar com os histéricos e com as histéricas no interior dos bares, onde eles terão chegado em vans alugadas para fazer o roteiro proposto pelos organizadores, não sejam idiotas a ponto de ficarem por aí conjugando o verbo proposto pelo festival - "Eu boteco, tu botecas, nós Comida di Buteco" -, não permitam que esse evento conspurque sua cidade e seu botequim preferido. Eu, ao menos, tenho imenso orgulho de dizer (e sou grato por isso) que os meus butecos de fé não participam dessa roleta-russa que visa, precipuamente, o lucro de quem, em pele de cordeiro, faz o papel do lobo devastador do sistema capitalista.
Até.
    

18.4.11

BOECHAT, UM FÓBICO

Eu não sei se já lhes contei isso (acho que já). Se já contei, conto de novo. Se ainda não contei, segue a nota inédita: uma das mais estranhas confissões que já recebi me foi feita por meu compadre, meu dileto amigo, Leonardo Boechat. Sei lá onde estávamos e muito menos sei qual o assunto que estava em pauta. Só sei que num determinado momento ele pôs o copo de cerveja na mesa (estávamos no Almara, fabuloso pé-sujo na Tijuca, lembrei), enxugou a testa com o antebraço e disse, soturníssimo:

- Preciso te contar uma coisa.

Quando alguém me diz "preciso te contar uma coisa" dá-se em mim um frio na barriga, desses que os atores sentem na noite da estréia. A frase, em si, é uma janela aberta para o infinito, como dizia meu mestre, Nelson Rodrigues. Pois fui, imeditamente, solidário na máscara triste e severa que meu amigo encarnava:

- Sou todo ouvidos.

Seus lábios começaram a tremer num balé muscular descompassado que foi dando contornos de dramaticidade à cena. Ele deu um gole demorado, tornou a encher o copo, pediu outra garrafa ao Paulo, pôs uma das mãos em meu ombro e disse, olhando para o chão:

- Eu nunca fui a um velório. Nunca fui a um enterro. Nem de parente! Nem de parente! - e foi quase chorando que ele gemeu a confissão.

Fiquei sem entender o porquê daquela revelação. Fui, entretanto, e mais uma vez, solidário:

- Entendo... - mas menti, faço agora a confissão.

Pois dito isso, vamos ao que quero lhes contar.

Estava eu em casa, ontem à tarde, quando bateu-me o telefone, justamente, o Leonardo Boechat. Havíamos estado juntos, pela manhã, no Bar do Chico, na Tijuca, na domingueira matinal. Disse-me ele:

- Topas ir na casa da minha mãe agorinha mesmo? Quero que você conheça meu tio Plácido.

Não podia dizer não. O Boechat tem, pelo tio Plácido, uma fascinação de fã, uma adoração, uma afeição imensa, e eu, que já conhecia incontáveis histórias envolvendo seu tio, não perderia a oportunidade (Plácido não mora no Rio):

- Topo!

Fui buscá-lo. Boechat estava numa festa de criança, na rua Alice, em Laranjeiras. Saí da Haddock Lobo, dobrei na Matoso, peguei a Barão de Itapagipe, a rua do Bispo, cruzei a Paulo de Frontin, ganhei a rua Estrela, dobrei à direita na Barão de Petrópolis, atravessei o túnel e lá estava eu na rua Alice, deslizando na descida quando avistei o bom Leo. Assim que ele sentou-se no banco do carona, disse eu:

- Estou sentindo uma coisa estranha... - e eu não mentia, por óbvio.

Percebi os olhos boechatianos voltando-se para mim. Eu prossegui:

- Estou com o braço esquerdo, na altura do ombro, formigando. Sinto como se os músculos estivessem sendo repuxados para cima. E o formigamento avança, chega nos dedos da mão...

Ele disse, com o mesmo gesto de enxugar a testa (Leo é calvíssimo):

- Você está infartando! Casa de Saúde São José, imediatamente!

Eu, que tenho pânico de médico (só vou ao meu homeopata em caso extremo de sintomas muito evidentes), disse:

- Nenhuma chance. Vamos direto pra sua mãe.

Ele ainda tentou, durante o trajeto até o Humaitá, me convencer do contrário. Em vão.

Mas eis o que ocorreu: permaneci na casa de sua mãe - que é médica, diga-se - por umas duas horas (e valeu cada minuto, o Plácido é, de fato, um grande praça, sua mãe também). E durante 120 minutos o Leo parecia o que minha avó chamava de barata-tonta.

- Como tá o braço?

- Piorando.

E ele suava, sapateava sobre os tacos da sala em sinal de nervosismo e desespero.

- Quer que eu peça pra minha mãe tirar sua pressão?

- Não vai adiantar nada.

Até que eu disse:

- Leo?

Ele atropelou o vaso de antúrios que nos separava:

- Fala! Fala!

- Já pensou?

Ele ganindo:

- O quê?! O quê?!

- Se eu morrer aqui...

Ele ajoelhou-se. Juntou as mãos em prece pagã:

- Não! Aqui não...

Continuei:

- ... muito justo que a parentalha saia com nojo do cadáver... Você terá de ficar me velando, fazendo quarto, até chegar a ambulância...

Ele, dirigindo-se aos parentes na cozinha:

- Gente, o Edu tá indo, ele tem hora!

E ele foi, efetivamente, me varrendo com as duas mãos, os olhos aterrados, empurrou-me pra dentro do elevador, fez questão de apertar o botão pra que eu descesse, ficou na janela pra se certificar de que eu partira.

Vejam vocês, fiquei com dó do meu bom amigo. A simples possibilidade, ainda que remota (eu não morreria fora da Tijuca) de velar alguém, de tomar conta de um defunto por algumas horas, trucidou o final de tarde do Boechat.

Era o que eu queria lhes contar.

Até.

16.4.11

ISSO É COMIDA DI BUTECO?

Ontem iniciei mais uma cruzada contra esse engodo que atende pelo nome Comida di Buteco - leiam aqui. Pois volto à carga hoje - e será assim durante os 30 dias de duração do troço - para exibir uma ignomínia sem tamanho, exaltada, é claro, pelo Festival da Jabalândia.

Um dos participantes do circo, aqui no Rio de Janeiro (e outras 14 cidades estão sendo, ao mesmo tempo, conspurcadas pelo negócio), é o Bar 20, em Ipanema, na zona sul. No site do Comida di Buteco lê-se que o tal bar concorre com um petisco (tenho nojo desse nome) chamado "20 Salpicá", e o nível da piada que cerca o nome da horrenda criação é um bom indicativo da qualidade de coisa ("vim te salpicar"). O que diz o site (vejam aqui) sobre o concorrente?

Que trata-se de um "salpicão de feijão com palha de carne-seca e vários ingredientes". Que tal? A foto está abaixo. 


É justo na desonesta informação - "vários ingredientes" - que se esconde o tesouro do Reino da Jabalândia. Como a maionese Hellmann´s patrocina o evento no Rio de Janeiro (e como se sabe um bom buteco não pode dispensar a maionese nos pratos que oferece, não é mesmo?), lá está ela. Esse troço é, na verdade, um patê de feijão com maionese Hellmann´s.

O site de notícias R7 (aqui) revela o que os organizadores escondem. Lê-se lá:

"A escolha dos ingredientes foi feita pelo gastrônomo e realizador do concurso, Eduardo Maya.

- O objetivo do concurso Comida di Buteco é resgatar a culinária de raiz do Brasil. Por isso busquei em nossos ancestrais colonizadores portugueses e índios os ingredientes que hoje conhecemos bastante na composição da feijoada."

Ora, a "culinária de raiz do Brasil" (a expressão também me causa engulhos) usa maionese e eu não sabia! "Nossos ancestrais colonizadores portugueses e índios" usavam maionese e eu não sabia!

No R7 a descrição é mais fiel e, portanto, nos dá a exata dimensão do horror que o Bar 20 oferece: "salpicão feito com feijão, milho, pimenta, cenoura, tomates secos, pimentões sortidos e maionese aromatizada com suco de laranja. É servido com palha de carne seca e torradas".

Por isso eu repito: fujam dos bares que participarão do festival, evitem esbarrar com os histéricos e com as histéricas no interior dos bares, onde eles terão chegado em vans alugadas para fazer o roteiro proposto pelos organizadores, não sejam idiotas a ponto de ficarem por aí conjugando o verbo proposto pelo festival - "Eu boteco, tu botecas, nós Comida di Buteco" -, não permitam que esse evento conspurque sua cidade e seu botequim preferido. Eu, ao menos, tenho imenso orgulho de dizer (e sou grato por isso) que os meus butecos de fé não participam dessa roleta-russa que visa, precipuamente, o lucro de quem, em pele de cordeiro, faz o papel do lobo devastador do sistema capitalista.

Até.

15.4.11

VAI COMEÇAR O FESTIVAL JABALÂNDIA

A expressão "jabalândia" foi criada por meu chapa, Julio Bernardo, que mantém um blog, bastante polêmico, sobre gastronomia - aqui. E eu a uso sempre que me refiro ao festival Comida di Buteco, para o qual enviei carta aberta em maio de 2010 (leiam aqui), jamais respondida, diga-se, muito embora uma das sócias do empreendimento, Maria Eulália Araújo, tenha me batido o telefone, no ano passado, como já lhes contei:

"Foi simpática e incisiva durante o telefonema. Disse-me, entre outras coisas, que eu havia sido injusto quando escrevi o que escrevi ontem, aqui; que eu, como jornalista (foi o que ela disse, depois corrigi o equívoco), deveria apurar tudo sobre o festival para depois escrever sobre ele; que é uma luta colocar o "festival na rua"; que as críticas que fiz, noutras oportunidades, deveriam ser relevadas, eis que as indicações dos bares participantes das últimas edições, aqui no Rio, haviam sido feitas por "especialistas no assunto", como Guilherme Studart e Moacyr Luz (por isso lembrei-me do tal projeto, citado no início); que minha crítica à inclusão de bares com redes de franquia ou com filiais não era de todo correta, pois no ano passado apenas duas casas (Academia da Cachaça e Siri) se enquadravam nessa condição. E convidou-me para uma conversa na semana que vem; e, por fim (houve mais, mas estou aqui fazendo apertada síntese), que eu desonrava minha participação no júri do ano passado esculhambando o festival."

Bom, vamos aos fatos e ao que quero lhes contar hoje.

Justiça seja feita (sou, além de preciso do início ao fim, justíssimo): os organizadores do festival (que tem entre seus patrocininadores a maionese Hellmann´s, a Nestlé e o biscoito Doritos que, como se sabe, são ingredientes fundamentais a qualquer comida de botequim..., além das cervejas Bohemia, Itaipava e Kaiser, a TV Globo e a Band, O Boticário e a cachaça Ypióca) não inscreveram nenhum bar com filial (uma crítica minha ferrenha, desde a primeira edição), ao menos no Rio de Janeiro. Não sei quanto às outras cidades (são 15 cidades participando do troço) - se você que me lê puder me ajudar quanto a isso, agradeço.

O festival começa hoje, 15 de abril, e vai até o dia 15 de maio, o que significa dizer que no dia de meu aniversário, 27 de abril, como se já não bastasse dividir a data com o inacreditável Dia Municipal do Teatro de Bonecos, iniciativa do vereador Eliomar Coelho (como lhes contei aqui), a cidade estará, ainda, conspurcada por esse pernicioso festival.

Se você me considera um radical, um incapaz de tecer qualquer crítica sem o coração à frente, leia - recomendo com entusiasmo! - o que escreveu, sobre o Comida di Buteco, Luiz Antonio Simas, Historiador maiúsculo, professor as 24h do dia, um de meus mestres, aqui. Fala, Simas:

"O que esse Comida di Buteco propõe, infelizmente, se inscreve numa inversão perigosa: é um exemplo bem acabado - e assustadoramente corriqueiro - de submissão da cultura à economia. Explico.

A ideia do festival me parece ser a de transformar o que seria cultura de botequim em um bom negócio para todos. Tento acreditar, sinceramente, nas boas intenções do babado e é possível que os envolvidos no evento achem de fato que estão valorizando o boteco. Sinto dizer que não estão.

O problema é que ao invés de entender a economia como parte constitutiva da cultura - esse poderoso campo que engloba nossos atos e nos define como homens humanos - essa perspectiva inverte tudo e transforma a cultura em parte constitutiva da economia - esse campo que, quando determinante, nos define como meros consumidores, desumanizados por conseguinte.

Insisto: a economia é que deveria ser encarada como um dos aspectos da cultura. O festival transforma a cultura em um mero elemento submetido aos ditames do mercado. Quando isso acontece, o que era cultura perde toda a carga de representações de modos de viver dos homens e se transforma, esvaziada de sua dimensão vital, em simples evento ou entretenimento, como queiram.

O Comida di Buteco é isso: um evento, desprovido de qualquer outro valor que não seja o de movimentar a economia da cidade, divulgar os patrocinadores, difundir a imagem dos participantes e aumentar o faturamento dos restaurantes envolvidos - objetivos legítimos, diga-se de passagem, ainda que não me comovam e que eu lhes faça sérias restrições.

O problema - gravíssimo! - é que a cultura, quando transformada e empobrecida em mero evento, morre. O festival, sob o pretexto de valorizar o botequim, joga contra exatamente o que diz querer valorizar.

Quando digo que a cidade tem alma, uso evidentemente uma metáfora para demonstrar que a cidade tem cultura. O botequim é, pois, um dos elementos constitutivos da cultura carioca. Certa feita escrevi o seguinte sobre o tema:

O buteco é a casa do mal gosto, do disforme, do arroto, da barriga indecente, da grosseria, do afeto, da gentileza, da proximidade, do debate, da exposição das fraquezas, da dor de corno, da festa do novo amor, da comemoração do gol, do exercício, enfim, de uma forma de cidadania muito peculiar. É a República de fato dos homens comuns...

É o nosso jeito, a nossa maneira, de recriar o mundo, inventar a vida, beber o passado, digerir o presente e projetar futuros. Nos definimos, dessa forma, como membros do nosso grupo e criadores de cultura - humanizados, portanto.

O Comida di Buteco cumpre muito bem o objetivo de agitar a cidade, movimentar a economia, colocar as pessoas na rua e o escambau. Não consigo, porém, deixar de ouvir uma voz, vinda sabem os deuses de onde [será o rugir do rótulo da maionese patrocinadora da coisa ?] , que parece inverter as lições do velho vagabundo:

- Não sois homens! Consumidores é que sois!

Tolo é quem pensa que o homem é desprovido da humanidade que lhe define quando morre. Mesmo morto, defuntinho da silva, o homem segue vivo na memória da sua gente, como dinamizador, pela lembrança, da tradição.

O homem só é desprovido de sua radical humanidade - morto, sem vitalidade -quando deixa de criar cultura e vira um reles espectador de uma vida que já não lhe é mais pertencimento."

Diante disso, resta-me dizer: fujam dos bares que participarão do festival, evitem esbarrar com os histéricos e com as histéricas no interior dos bares, onde eles terão chegado em vans alugadas para fazer o roteiro proposto pelos organizadores, não sejam idiotas a ponto de ficarem por aí conjugando o verbo proposto pelo festival - "Eu boteco, tu botecas, nós Comida di Buteco" -, não permitam que esse evento conspurque sua cidade e seu botequim preferido. Eu, ao menos, tenho imenso orgulho de dizer (e sou grato por isso) que os meus butecos de fé não participam dessa roleta-russa que visa, precipuamente, o lucro de quem, em pele de cordeiro, faz o papel do lobo devastador do sistema capitalista.

Até.

14.4.11

42 ANOS - COMEÇOU O ARREMESSO AO PASSADO

Quem me lê com freqüência sabe que sou um homem por diversas vezes acometido por verdadeiros surtos de arremesso violento em direção ao passado.

Esses arremessos - e faço constantemente menção a eles - acontecem, quase sempre, de forma involuntária. Explico.

Estou no carro deslizando pelas ruas da Tijuca. Passo, por conta do caminho necessário, diante do número 84 da rua São Francisco Xavier. É o que basta: estou, em questão de segundos, com 10 anos de idade, calças curtas e camisa listrada, jogando bola de meia na vila onde moraram meus avós. Estou na cozinha e diante de mim, sobre a pia, a cesta de frutas onde repousam algumas bananas. Se ocorre de eu esbarrar o olhar, num átimo de segundo, no açucareiro, lá vou eu cortar a banana ao meio, no sentido longitudinal, pô-la num prato de louça, fatiá-la com a faca em pequenos quadrados sem tirar a casca, pôr um punhado de açúcar ao lado e comer à moda de minha bisavó. Se vou à Teresópolis, ou mesmo se passo por lá a caminho de Nova Friburgo, ouço a voz de minha tia Zirota com uma nitidez capaz de fazer qualquer psiquiatra pedir arrego diante de mim. E por aí vai.

Ocorre que com a aproximação do dia 27 de abril, dia em que nasci - na Tijuca, evidentemente - esses arremessos ao passado passam a ocorrer com mais freqüência, muitos deles provocados por mim. Volto a explicar.

Hoje mesmo, 14 de abril, saltei da cama, serelepe, às 03h20min da manhã. Aqui, um pequeno parêntese. Sou mais filho do meu pai do que supõe meu DNA. Papai, que é um homem que anda com frases feitas no bolso e que são por ele repetidas com cômica assiduidade, acorda, há anos, por volta desse horário. E é encontrar o velho pra ele começar:

- Hoje acordei tarde... - e ele faz cara de quem espera a reação já ensaiada.

Às vezes é meu irmão que o interpela:

- É? A que horas?

E ele, dotado de inexplicável orgulho:

- Três e quinze!

Captaram?

Mamãe e minha menina vira-e-mexe tricotam, e eu pesco:

- Maria, o Eduardo está ficando igual ao Isaac! - com uma máscara de terror no rosto.

Mamãe bate na mesinha de madeira mais próxima:

- Minha filha, abra o olho, abra o olho! E que ele copie só as coisas boas!

Minha garota emenda:

- Tem acordado cada vez mais cedo...

Dá-se novas batidinhas na madeira:

- Ai, ai, ai... - em tom de lamúria.

E fecho os parêntesis.

Pois bem. Eu, que de fato acordo cedíssimo, acordei hoje às 03h20min - o que não é, é claro, comum - por conta de um arremesso ao passado típico da véspera de meus aniversários. Dá-se em mim, nos abris, uma sensação que, em 2006, aqui mesmo no blog, assim defini:

"Há, em mim, constantemente, e mais em abril do que em qualquer outro mês, uma permanente gana de dizer o que já foi dito, de escrever o que já foi escrito, de inventar o que já está inventado há dezenas, centenas, milhares de abris."

Pois hoje, às 03h20min da manhã, fui à cozinha, preparei meu café preto, acendi meu primeiro cigarro do dia, fiz festinha no meu vira-latas, chorei sem razão aparente e fui ao banheiro atestar, diante do espelho, o quanto de tempo se acumula em mim, nos meus olhos com ptose, na minha visão discretamente míope, nos fios brancos da barba rala que carrego no rosto, e só recuperei o humor quando voltei ao quarto, já de banho tomado, por volta das 5h. Escuro, ainda, o som do ar-condicionado e aquela voz baixinha e rouca saindo debaixo do cobertor:

- Tu tá ficando igualzinho ao teu pai...

Perto de completar 42 anos, não é exatamente fácil perceber o quão distante vou ficando daquele menino que jogava bola de meia na vila da São Francisco Xavier. A luta permanente para mantê-lo vivo dentro de mim é, estou a cada dia que passa mais certo disso, o que me sustenta o ânimo e que me mantém.

Até.

6.4.11

VOVÓ FAZ ANOS AMANHÃ

Amanhã, 07 de abril, a 20 dias dos meus 42 anos, minha avó faz anos. Dirão meus mais fiéis leitores, e os de melhor memória, que vovó morreu em dezembro. E eu negarei diante dos devaneios que esta foto, que tantos textos já ilustrou por aqui (é, de fato, uma de minhas preferidas), me provoca. Cá estou eu, de calças curtas e camisa listrada, tendo à minha direita minha mãe, à minha esquerda minha avó e na extrema esquerda (extrema direita da foto, notem minha precisão), minha bisavó - mãe de vovó. Estamos todos diante da mureta que havia na casa da vila onde moravam meus avós (minha bisavó junto, sempre), na Professor Gabizo, bem próximo à Heitor Beltrão, na Tijuca evidentemente. 


Será, de fato, seu primeiro aniversário, em 41 anos de vida, sem sua presença tangível. E eu falei "tangível" e por isso quero dividir com quem me lê um troço que há tempos, hoje mais agudamente, me encasqueta: problema grave na história do homem é a religião. A religiosidade, não. A religiosidade é de uma boniteza que comove.

Explico.

Amanhã vou fazer meu café, pela manhã, e vou servir uma xícara de café com leite, como ela gostava, e vou oferecer a ela - com torradas. Dirão alguns, bradando aos céus, que estou louco. Vovó descansa no reino dos céus, plácida e tranqüila ao som das harpas dos anjos - nem à fórceps! Vovó era agitada que só ela, não dispensava o pôquer com as amigas todas as sextas-feiras, no Méier, andava pra lá e pra cá de ônibus, conhecia os motoristas pelo nome, fazia o supermercado, não perdia uma novela. Não estaria, jamais, no tal reino. Dirão outros que eu devo deixar vovó descansar, que devo contribuir para seu desprendimento, por aí. Ora, meus poucos mas fiéis leitores... o que mais pode desejar uma avó, e que seja no dia de seu aniversário, do que o carinho comovido de um de seus netos? Onde vive minha avó se não em mim? O que pode haver de mais bacana, nessas horas, além da perfeita conjunção de sentimentos de afeto em estado bruto? Como dizer a vocês, com as palavras - que por vezes me fogem - o quanto de alegria e felicidade me proporcionarão os pequenos gestos que a ela dedicarei no dia de seu nascimento? Leve flores ao cemitério, dirão os mais contidos. Ao cemitério? Foi lá, no cemitério - que de certa forma foi cômico, como lhes contei aqui - que vivi um dos mais duros momentos da minha vida (que não tem sido fácil...), vendo descer o caixão que guardava dona Mathilde... Fazer o quê no cemitério? Os céticos, os ateus, balançarão cabeças com dó de tamanha insanidade: vovó acabou, dirão sapateando sobre a memória, sobre a saudade, sobre a religiosidade - e é aqui que eu queria chegar.

Se temos que a religião é um sistema de doutrinas (sistema!!!!!), de crenças, de práticas rituais próprias de um grupo social, estabelecido segundo uma determinada concepção (concepção!!!!!) de divindade e da sua relação com o homem, e se temos que a religiosidade é mera tendência para os sentimentos de religar, e se eu sou um homem movido por sentimentos, desde que nasci, se sou alma e coração em estado bruto, se choro ouvindo os tambores da macumba, se fico atento aos conselhos dos caboclos, se faço comida pra Orixá, se tomo passe em centro espírita, se mal consigo falar seguindo a procissão de meus santos mais afins, se ligo aos prantos, todo segundo domingo de outubro pra falar com minha comadre Railídia, paraense e como toda paraense devota de Nossa Senhora de Nazaré, se chamo São Jorge de Ogum e se deito meu ilekê sobre o cavalo de São Jorge que pertencia ao congá do terreiro de xambá da avó do Simas, se me consulto com um médico que já morreu há anos, como é que alguém pode querer que eu siga determinado sistema de doutrinas?!

Eu quero é festa, eu quero é me emocionar, pombas! Por isso amanhã vou preparar o café da manhã de minha avó, vou enfeitar a casa com rosas brancas, vou chamá-la pra contar a ela as novidades, vou espalhar água de cheiro pela casa, vou pôr Orlando Silva pra cantar, e se me der na telha ainda compro bolo de aniversário pra comer de sobremesa à noite, depois do jantar. Devidamente encerrado com uma dose de vinho do Porto... porque eu vou lhes contar uma coisa... Vovó nunca dispensou as doses (no plural!, no plural!) de vinho do Porto quando ia jantar lá em casa, uma vez por semana.

Era o que eu queria lhes contar. Chama, dona Mathilde, chama!

Até.

pós-escrito às 16h55min:

Impossível não fazer o adendo. Estava eu em Copacabana, por volta das 15h50min, saindo de um compromisso profissional, caminhando pela Nossa Senhora de Copacabana à espera de um táxi. Sinal fechado, fiz o sinal. Parou um Palio Weekend, entrei. No painel, um adesivo da cooperativa Táxi Garibaldi. Vamos ao contexto. A Táxi Garibaldi tem ponto justamente na rua Garibaldi, na Tijuca. Uma transversal da rua General Espírito Santo Cardoso, onde residia minha avó. Achei graça daquilo e fiz a blague:

- A cooperativa que minha avó mais usava...

O motorista:

- É?

- Morreu em dezembro, fará 87 anos amanhã...

Ele virou-se pra mim e disse:

- Dona Mathilde? A baixinha e cheirosa? Morreu?

Nem consegui responder. Eu já guinchava no banco do carona de tanto que chorava. Liguei pra mamãe, contei a história. Liguei pra minha menina, contei a história. O motorista - seu José - já fungava ouvindo tudo. Era, pra mim, sinal evidente de que vovó se fazia presente.

E pra não perder o fio da meada do texto que escrevi hoje pela manhã, vamos lá.

Dirão os céticos: trata-se de apenas uma coincidência. Pois sim! São mais de 35 mil táxis circulando no Rio de Janeiro, e cerca de 5 mil irregulares, num total de 40 mil veículos amarelinhos rodando por aí. E aí, no dia de hoje, véspera do aniversário da dona Mathilde, na tarde do dia em que escrevi, pela manhã, verdadeiro chamamento e prece quase pagã em sua intenção, um táxi justo da cooperativa da qual ela fazia uso freqüente, conduzido por um motorista que a conhecia ("baixinha", "cheirosa", "vaidosa", "serelepe", "elegante"...) e que mora na esquina da rua de vovó dá de me resgatar em Copacabana rumo ao Centro. Tá bom, então.

Eu quero é me emocionar, pombas!

5.4.11

FAZ UM 12, BRIZOLA!!!!!

No dia 18 de agosto de 2006 expus, aqui, o vídeo no qual apareço gritando "Faz um 12, Brizola!", ao vivo, na TV Globo, durante a final de um dos festivais de música promovidos pela Vênus Platinada. Ontem, depois de descobrir a conta no twitter de Serginho Groisman e Renata Ceribelli - os dois jornalistas que trabalhavam naquela noite de 16 de setembro de 2000, há quase 11 anos! -, expus novamente o meu feito na grande rede, e deu-se a bulha. Muita gente repicando o vídeo, muita gente me dando os parabéns pela coragem, muita gente achando muita graça e me perguntando sobre os detalhes que envolveram a ação que ganhou contornos de subversão (o que muito me orgulha, diga-se).

Como eu sou preciso do início ao fim, vamos aos detalhes do troço.

Corria, como já lhes disse, o ano 2000. E é preciso contextualizar para que tudo ganhe os contornos de emoção que a noite teve.

Em 2000 eu e Moacyr Luz, que faz anos hoje, éramos quase-siameses (digo "éramos" porque não trocamos mais palavra). E o Moacyr, que concorrera com o samba "Eu só quero beber água", chegara à grande final, em São Paulo, que aconteceria no Credicard Hall. Na época, um de nossos bunkers era o Bar da Dona Maria, hoje um triste arremedo de botequim na rua Garibaldi, na Tijuca, onde morava o Moacyr (no mesmo prédio onde até hoje mora Aldir Blanc). Pois o povo do Bar da Dona Maria armou animadíssima torcida pra comparecer, em peso, à finalíssima. Mandamos fazer camisas com o nome do samba, pintamos faixas, cartazes, o escambau a quatro.

Sigamos contextualizando: corria o ano 2000 e meu saudoso e eterno governador, Leonel de Moura Brizola, era candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro. Mantendo uma tradição, a sambista Beth Carvalho emprestou a voz para o principal jingle da campanha: "Faz um 12 aí! Faz um 12 aí! Com Brizola o Rio vai voltar a sorrir!".

Em 2000, Brizola ainda era um palavrão segundo os manuais de redação da TV Globo. Seu nome era proibido, vetado, terminantemente censurado. E quem - vão tomando nota dos desenhos... - era a cantora convidada para fazer o show de encerramento do festival da Globo? Ela, Beth Carvalho. O convite, é claro, havia sido feito antes de deflagrada a campanha eleitoral, antes da voz inconfundível da Beth ecoar, aos quatro ventos, nas TVs, nas rádios, nas ruas, exaltando a candidatura de Leonel Brizola.

O que fez a TV Globo? Desconvidou Beth Carvalho e em seu lugar chamou o também sambista Jorge Aragão. Prova disso, como se não bastasse o telefonema que recebi da cantora, era o convite para o festival. Constava lá: show de encerramento com Beth Carvalho. E sobre o nome da Beth, um carimbo, vermelho, onde se lia: Jorge Aragão.

Quando a Beth me ligou - brizolista roxa! - indignada, eu disse num sem-pulo:

- Querida, fica tranqüila. Eu vou te vingar! - e mais não disse.

Confesso a vocês, quase 11 anos depois, que eu não tinha a menor idéia do que faria: mas eu faria alguma coisa (e os que bem me conhecem podem atestar como se dá, em mim, essa centelha).

Parti na véspera levando na bagagem um boné vermelho com o nome Brizola em letras brancas, enormes. E disse, de mim para mim:

- Vou levar dobrado no bolso da calça. Lá eu vejo o que faço.

Houve um encontro, no Pirajá, horas antes do festival, já em São Paulo, é claro. Só duas pessoas sabiam, àquela altura, de minhas intenções: minha menina e meu irmãozinho, Fernando Szegeri. Mas nem eu mesmo sabia, ainda, o que é que eu aprontaria. Mas eu aprontaria!

Partimos pro Credicard Hall. Teve início o festival, transmitido ao vivo para todo o Brasil. Percebi que durante os intervalos o apresentador Serginho Groisman chamava a repórter Renata Ceribelli, no meio da platéia, para entrevistar a assistência. Num desses intervalos, a abordei:

- Eu vim do Rio... Posso falar?

E ela:

- Pode! Pode! Fica aqui, fica aqui... Daqui a pouco eu entro!

E foi, num átimo, que a idéia me veio à cabeça. Ao se dirigir a mim, a repórter, eu meteria o boné na cabeça e daria o grito de guerra:

- Faz um 12, Brizola!

E assim foi.

Atentem para a dinâmica dos fatos:

01) segundos após meu grito estrilou meu celular. E eu só ouvia as gargalhadas da minha querida Beth Carvalho;

02) fui cercado, logo depois, por 8 seguranças, todos de terno, que diziam coisas como "fora daqui", "vem conosco, vamos dar uma volta lá fora", e eu resistindo. Um deles, pelo rádio, gritou "o Talma quer esse cara fora do teatro!", por aí;

03) estrila de novo meu celular. É meu pai, aflito: "Você enlouqueceu? Já são mais de cinco minutos de comerciais, eles pararam a transmissão do festival! O que está acontecendo?";

04) minha menina pula, como um coala, na minha cintura e começa: "Ninguém toca nele, ninguém toca nele!", a essa altura os caras já estavam me empurrando pro lado de fora. Chegam Fernando Szegeri e Marcus Gramegna, amigo de São Paulo, o bravo Marcão, ambos advogados, e passam a exigir uma explicação para aquela truculência;

05) um homem, mais velho, apresentou-se como o Chefe da Segurança e me perguntou, calmamente, o que eu havia feito. Exibi o boné e disse: "Gritei o nome do Brizola com esse boné na cabeça. Eis minha arma, eis meu crime...". O homem riu, disfaraçadamente, e disse: "Você não fez isso... diz que não fez...", e passou a negociar uma saída pacífica;

06) eu soube, tempos depois, que o Moacyr Luz, que entraria em seguida no palco, estava sendo abordado, também por seguranças, na coxia, já que eu vestia a camisa com o nome de seu samba. Queriam saber, a todo custo, quem eu era, onde morava, detalhes;

07) uns minutos mais tarde, graças à intervenção do Chefe da Segurança, graças à atuação do Szegeri e do Marcão, e de minha menina, chegamos a um consenso: nós continuaríamos no teatro, afastados da platéia, numa espécie de camarote vip. E vigiados de perto. A cada ida minha ao banheiro, lá iam dois, três seguranças!;

08) terminado o festival o Chefe da Segurança me pediu, encarecidamente, que eu lhe entregasse o boné "para perícia". Ri tanto daquilo que não me opus;

09) voltamos todos ao Pirajá. E o Moacyr Luz não me dirigiu palavra, atribuindo a mim sua derrota.

No domingo seguinte, a revista Veja exibiu minha imagem com a frase: "Eduardo Goldenberg, advogado carioca, no auditório do Credicard Hall durante a final do festival de MPB da Globo, colocando a repórter Renata Ceribelli numa saia-justa". Tal texto foi escrito por um jornalista amigo meu, razão pela qual meu nome aparecia na matéria (abaixo).


Quando eu cheguei de volta ao Rio, a página do PDT na internet exibia o vídeo com uma tarja enorme: "Deu 12 na Globo", e seguia um texto exaltando um "homem que pôs o nome de Brizola, depois de anos de censura, no horário nobre da TV Globo". Escrevi para o partido. Identifiquei-me. Disse que minha imagem estava à disposição da candidatura de Brizola. E isso me rendeu um telefonema, que durou 40 minutos, do próprio, poucas horas depois do envio da mensagem.

Dali em diante, sempre que eu encontrava Brizola (e nosso último encontro foi em 2002 na casa do Martinho da Vila, como lhes contei aqui), ele fazia referência ao episódio.



Eu tenho um orgulho danado de ter feito o que fiz. Era o que eu queria lhes contar.

Até.

4.4.11

OS BOLSONARO

Desde que Jair Bolsonaro, o inacreditável Jair Bolsonaro, deputado federal pelo Rio de Janeiro, eleito pelo PP (Partido Progressista) - e aí já reside uma das maiores ironias da política brasileira! - deu as declarações que deu ao programa CQC (de tão baixo nível quanto o congressista em tela) recentemente, deu-se a bulha no seio da sociedade. Isso só se deve, creio eu, ao fato de que a principal agressão foi em direção à Preta Gil, filho do ex-ministro Gilberto Gil, expoente da música brasileira. Será que não bastou, para a mais aguda indigação com relação a Jair Bolsonaro, o vídeo no qual o deputado diz, com todas as letras, que o erro do governo militar foi torturar e não matar? Não bastou quando ele incitou os pais a usarem da violência diante dos indícios apontando para a homossexualidade de seus filhos? Não bastou quando referiu-se à Presidenta Dilma Rousseff, diversas vezes, como ladra, terrorista, assassina? Acho, franca e sinceramente, que esse homúnculo já foi longe demais. E fiquei satisfeito com o envolvimento da Preta Gil no rol dos insultos do sujeito: se foi essa a gota d´água, melhor assim. Torço para que sigam adiante os feitos distribuídos contra Jair Bolsonaro a fim de que possamos tê-lo, o quanto antes, longe do Congresso Nacional. Feito o breve intróito, vamos aos que quero lhes contar.

Tenho tido, desde então, diversos pensamentos (delírios, eu diria) que me levam a imaginar o dia-a-dia dessa família, a dos Bolsonaro. Deve ser, meus poucos mas fiéis leitores, um ambiente de tanta leveza, de tanta harmonia, de tanta tranqüilidade...

01) Acorda o vereador Bolsonaro. Encontra, à mesa, o pai (ainda de pijamas). Ao lado do pai, o deputado estadual Bolsonaro (notem que, como metástase, espalham-se os Bolsonaro nas esferas de poder). Senta-se o verador. Diz:

- Pai, me passa a manteiga?

O irmão mal disfarça. E ri. Ergue-se o federal:

- Macho come pão seco! Estenda a mão! Estenda a mão!

E com a palmatória, guardada na gaveta dos talheres, castiga o filhote.

02) Ainda um menino, o hoje vereador chega do colégio cantando: "Atirei o pau no gato-to, mas o gato-to, não morreu-reu-reu...". O pai, de pijama, ergue-se da poltrona e urra:

- Junto!

Cabisbaixo, o vereador obedece.

- Filho, vá buscar o porrete do papai no quarto da escrava! - diz em direção ao estadual, que o obedece. A empregada, a tudo assistindo, chora por dentro ao ouvir, de novo, que é uma escrava.

Volta o estadual. Entrega o porrete ao federal. Este, sentando a borduna no bumbum do vereador, grita:

- Aprenda como se atira o pau no gato, seu frouxo! Macho tem de saber matar um gato na base da porrada!

03) O estadual, certo dia, comenta durante o jantar:

- Pai, quero entrar pra natação.

Ouve-se um soco, seco, no tampo da mesa. Saltam os copos, os talheres, os pratos quicam. O vereador, achando que aquilo era um sinal de satisfação paterna, emenda:

- Eu também...

Ergue-se o pai, de pijama. Olha, com ódio, pra esposa. Espuma. Limpa a baba que escorre pelo canto da boca com a manga do pijama. E vocifera:

- Natação? Querem usar touquinha, suas bichas! Já pro sofá! Os dois! Os dois! De quatro no sofá!

Vai à cozinha, entrega uma nota de dinheiro à empregada (a quem ele chama de escrava) e sussura alguma coisa em seu ouvido. Passam-se 10 minutos. Ele volta à cozinha e vem à sala. Dirige-se aos meninos, ainda de quatro. Ordena que eles se sentem. E enterra, na cabeça do vereador e depois na do estadual, a touca de borracha até a altura do queixo. Balança suas cabeças com raiva e descontrolado, enquanto grita:

- Natação é coisa de viado, seus imbecis! Entenderam?! Entenderam?!

Meia-hora depois, os meninos tontos, assentem e desistem, para sempre, do esporte aquático.

04) Está chegando a Páscoa. O vereador chega, depois de um dia de trabalho na Câmara, trazendo consigo uma sacola da Kopenhagen. O pai ergue a vista sobre o jornal O Globo e pergunta:

- Que porra é essa?

- Ovo de Páscoa para a minha secretária...

Ergue-se o federal, de pijama:

- Ovo de Páscoa? Secretária? Desde quando uma serviçal é chamada de secretária? Desde quando macho compra ovinho de Páscoa, seu imbecil! Me dê isso, agora!

O vereador não titubeia. Entrega a sacolinha.

- Ajoelhe, verme! Agora! Abra a boca!

E enterra o ovo, pedaço por pedaço, na boca do filhote.

Com o passar do tempo, divido mais com vocês sobre meus delírios com essa harmoniosa família Bolsonaro.

Até.