18.4.11

BOECHAT, UM FÓBICO

Eu não sei se já lhes contei isso (acho que já). Se já contei, conto de novo. Se ainda não contei, segue a nota inédita: uma das mais estranhas confissões que já recebi me foi feita por meu compadre, meu dileto amigo, Leonardo Boechat. Sei lá onde estávamos e muito menos sei qual o assunto que estava em pauta. Só sei que num determinado momento ele pôs o copo de cerveja na mesa (estávamos no Almara, fabuloso pé-sujo na Tijuca, lembrei), enxugou a testa com o antebraço e disse, soturníssimo:

- Preciso te contar uma coisa.

Quando alguém me diz "preciso te contar uma coisa" dá-se em mim um frio na barriga, desses que os atores sentem na noite da estréia. A frase, em si, é uma janela aberta para o infinito, como dizia meu mestre, Nelson Rodrigues. Pois fui, imeditamente, solidário na máscara triste e severa que meu amigo encarnava:

- Sou todo ouvidos.

Seus lábios começaram a tremer num balé muscular descompassado que foi dando contornos de dramaticidade à cena. Ele deu um gole demorado, tornou a encher o copo, pediu outra garrafa ao Paulo, pôs uma das mãos em meu ombro e disse, olhando para o chão:

- Eu nunca fui a um velório. Nunca fui a um enterro. Nem de parente! Nem de parente! - e foi quase chorando que ele gemeu a confissão.

Fiquei sem entender o porquê daquela revelação. Fui, entretanto, e mais uma vez, solidário:

- Entendo... - mas menti, faço agora a confissão.

Pois dito isso, vamos ao que quero lhes contar.

Estava eu em casa, ontem à tarde, quando bateu-me o telefone, justamente, o Leonardo Boechat. Havíamos estado juntos, pela manhã, no Bar do Chico, na Tijuca, na domingueira matinal. Disse-me ele:

- Topas ir na casa da minha mãe agorinha mesmo? Quero que você conheça meu tio Plácido.

Não podia dizer não. O Boechat tem, pelo tio Plácido, uma fascinação de fã, uma adoração, uma afeição imensa, e eu, que já conhecia incontáveis histórias envolvendo seu tio, não perderia a oportunidade (Plácido não mora no Rio):

- Topo!

Fui buscá-lo. Boechat estava numa festa de criança, na rua Alice, em Laranjeiras. Saí da Haddock Lobo, dobrei na Matoso, peguei a Barão de Itapagipe, a rua do Bispo, cruzei a Paulo de Frontin, ganhei a rua Estrela, dobrei à direita na Barão de Petrópolis, atravessei o túnel e lá estava eu na rua Alice, deslizando na descida quando avistei o bom Leo. Assim que ele sentou-se no banco do carona, disse eu:

- Estou sentindo uma coisa estranha... - e eu não mentia, por óbvio.

Percebi os olhos boechatianos voltando-se para mim. Eu prossegui:

- Estou com o braço esquerdo, na altura do ombro, formigando. Sinto como se os músculos estivessem sendo repuxados para cima. E o formigamento avança, chega nos dedos da mão...

Ele disse, com o mesmo gesto de enxugar a testa (Leo é calvíssimo):

- Você está infartando! Casa de Saúde São José, imediatamente!

Eu, que tenho pânico de médico (só vou ao meu homeopata em caso extremo de sintomas muito evidentes), disse:

- Nenhuma chance. Vamos direto pra sua mãe.

Ele ainda tentou, durante o trajeto até o Humaitá, me convencer do contrário. Em vão.

Mas eis o que ocorreu: permaneci na casa de sua mãe - que é médica, diga-se - por umas duas horas (e valeu cada minuto, o Plácido é, de fato, um grande praça, sua mãe também). E durante 120 minutos o Leo parecia o que minha avó chamava de barata-tonta.

- Como tá o braço?

- Piorando.

E ele suava, sapateava sobre os tacos da sala em sinal de nervosismo e desespero.

- Quer que eu peça pra minha mãe tirar sua pressão?

- Não vai adiantar nada.

Até que eu disse:

- Leo?

Ele atropelou o vaso de antúrios que nos separava:

- Fala! Fala!

- Já pensou?

Ele ganindo:

- O quê?! O quê?!

- Se eu morrer aqui...

Ele ajoelhou-se. Juntou as mãos em prece pagã:

- Não! Aqui não...

Continuei:

- ... muito justo que a parentalha saia com nojo do cadáver... Você terá de ficar me velando, fazendo quarto, até chegar a ambulância...

Ele, dirigindo-se aos parentes na cozinha:

- Gente, o Edu tá indo, ele tem hora!

E ele foi, efetivamente, me varrendo com as duas mãos, os olhos aterrados, empurrou-me pra dentro do elevador, fez questão de apertar o botão pra que eu descesse, ficou na janela pra se certificar de que eu partira.

Vejam vocês, fiquei com dó do meu bom amigo. A simples possibilidade, ainda que remota (eu não morreria fora da Tijuca) de velar alguém, de tomar conta de um defunto por algumas horas, trucidou o final de tarde do Boechat.

Era o que eu queria lhes contar.

Até.

6 comentários:

Rafael Maia disse...

Como toda a unanimidade é burra, talvez algum idiota da objetividade não tenha achado teu texto extraordinário. Lamento por eles... Abraços

Rodrigo disse...

MAGISTRAL!

Diego Moreira disse...

O comunista faz mesmo umas caras muito soturnas eventualmente.

Danilo disse...

Eu sou testemunha que o Leo tentou - eu disse tentou - doar sangue uma vez.

FVale disse...

Mas o q vc tinha afinal? Já tive isso e foi só pressão alta, mas é bom não brincar. Fernão

Unknown disse...

"Eu não morreria fora da Tijuca". Sensacional......Eduardo Goldenberg em estado bruto!!!
Sem falar que a frase demonstra um (auto)controle médico-geográfico.